Cinderela foi salva da madrasta malvada e das irmãs invejosas quando o príncipe, finalmente, descobriu que era seu o sapatinho de cristal; Aurora, a bela adormecida, passou anos desacordada graças a maldição de Malévola, despertando apenas com o beijo de amor verdadeiro de seu príncipe encantado; Rapunzel foi isolada no alto de uma torre por outra bruxa má e seu destino só mudou quando um príncipe a encontrou por puro acaso; e Ariel negociou sua bela voz com a vilã Úrsula, em troca de um par de pernas para se aproximar de seu amado.
O que todas essas personagens têm em comum, além de serem clássicas princesas Disney? Elas são as protagonistas de seus filmes, mas carregam consigo o estereótipo da donzela em apuros, atormentada por uma bruxa invejosa e cruel, e dependente da bravura de um nobre homem. Além disso, todos os contos de fadas mencionados apresentam uma estrutura narrativa muito semelhante: a da jovem injustiçada por outra mulher que cobiça sua beleza, sua voz, sua posição social e que, no final, vence o mal ao se encontrar com o príncipe encantado.
Essas animações atravessaram gerações, servindo de exemplo a incontáveis garotas que cresceram com a ideia de que a mulher está destinada, quase que naturalmente e biologicamente, a determinados padrões comportamentais e estéticos. Como se mulheres tivessem apenas duas opções: ser frágil, delicada e amada ou megera, malvada e menosprezada.
Por anos esse tipo de ficção infantil foi base do imaginário de milhares de crianças ao redor do mundo – principalmente do imaginário coletivo feminino. Mas, no momento em que passa a existir uma demanda – no geral, feminista – por personagens mulheres mais complexas e estruturadas, elas são denominadas “mulheres fortes”.
A princípio, a ideia de mulher forte surge para fazer imediata oposição a inocência e inércia das protagonistas boazinhas e sem muita personalidade. Um bom exemplo é a princesa Merida, de Valente. A jovem nórdica, ruiva e de cabelos volumosos e cacheados se revolta contra a própria família quando percebe que seria submetida a um casamento arranjado, que beneficiaria apenas a política dos homens.
É provável que esta tenha sido a primeira vez que a Disney usou como estratégia de marketing de um filme uma nova leitura de princesa. A “princesa forte”, que não encontra seu príncipe no final, mas que melhora sua relação com a mãe, por exemplo. Desde então tivemos Elsa, Anna e Moana. Todas muito mais protagonistas de suas próprias tramas.
Como bem apontou a atriz Emilia Clarke (Daenerys Targaryen, de Game of Thrones) durante uma entrevista que viralizou pela internet, ninguém caracteriza um personagem homem como forte se não estiver se referindo a sua característica física. “As pessoas dizem: como é interpretar uma mulher forte? E eu respondo: como é interpretar uma mulher. Estou interpretando uma mulher. Se isso não é forte, o que é? Quer dizer, existe outra opção? Uma opção fraca?”, indagou a atriz.
A história do cinema é, com certeza, repleta de personagens mulheres fortes. Mas como elas foram construídas? Pra que serviram em suas narrativas? Eram apenas muletas para personagens homens? Enquanto precisamos questionar esse tipo de coisa, os homens sempre puderam ser extrovertidos, corajosos, audazes, inteligentes, firmes, generosos, perspicazes e mais todos os adjetivos que consigamos pensar.
Isso acontece principalmente porque, à medida em que homens escrevem sobre outros homens e lhes presenteiam com uma imensa gama de possibilidades de histórias para contar, personagens muito mais diversos são criados para contemplar a demanda. Daí a necessidade urgente de também ter mulheres envolvidas em todos os setores de um filme – principalmente direção e roteiro, que ainda são as áreas mais criativas e majoritariamente dominadas pelos homens.
Se seguimos somente com as tramas que contam sempre a história da mulher que superou todo tipo de adversidade e deu a volta por cima, cairemos em uma nova armadilha. Deixaremos o estereótipo da princesa tola e cederemos ao estereótipo da “mulher forte”, abrindo mão, novamente, de qualquer diversidade. É urgente e imprescindível que o cinema diversifique abordagens e abandone o conforto das personagens que simplesmente funcionam ou que comovem e agradam.
Além do mais, mulheres não são fortes porque soa como um belo adjetivo. Geralmente mulheres são fortes por necessidade, sobrevivência. Basta tomar como exemplo o caso de June, a Offred de The Handmaid’s Tale – distopia ovacionada pela crítica e pelo público por representar um cenário extremo de desigualdade e violência de gênero.
A personagem de Elisabeth Moss era uma mulher independente, tinha uma carreira, uma família, planos e sonhos. De repente, sua vida sofre uma reviravolta e ela é escravizada por uma sociedade autoritária, abusiva e misógina. Uma realidade que, de certa forma, já diz respeito a muitas mulheres do mundo real e atual.
Por isso, é claro que produções como “The Handmaid’s” ocupam um lugar importante de denúncia. E também é importante falar sobre mulheres obrigadas a serem fortes. Mas logo será fundamental avançar a discussão. Se num primeiro momento as personagens “fortes” foram necessárias para acabar com certo padrão de representatividade, agora queremos mais. Queremos mais mulheres reais e possíveis. Queremos equidade, afinal.
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