Animais caçados, esfolados, brancos racistas e neocolonialismo na África. Junte tudo isso a uma crueza horripilante e terá Safári, documentário austríaco que estreia nesta quinta (14). Dirigido por Ulrich Seidl – de mesma nacionalidade de seu longa-metragem –, o filme foi exibido pela primeira vez no Festival de Veneza de 2016, despertando a repulsa e a inconformidade de espectadores desde então.
O que é mostrado em Safári choca não somente pela frieza por de trás das câmeras, mas principalmente pela profundidade do que há em suas imagens. Portanto, se você se emociona facilmente com maus-tratos a animais, se se impressiona com sangue e exposição da parte interna de seus corpos e, ainda mais, se lida muito mal com a exibição de discursos racistas, é recomendável que não assista ao documentário.
(Trailer oficial – ATENÇÃO! Imagens fortes):
(Fonte: CartaCapital / YouTube)
A primeira cena do longa-metragem já denuncia o grande incômodo que será assisti-lo; um homem toca um instrumento de sopro continuamente, e durante alguns minutos. Em seguida, um casal de caçadores, de europeus idosos, descansa tranquilamente sob a luz do sol. Enquanto esperam o protetor solar secar, repassam os preços de cada animal no mercado de caça.
O enquadramento, majoritariamente em plano americano, revela indivíduos quase estáticos; ora orgulhosos de seus troféus empalhados, ora inexpressivos (este último caso, quando aplicado aos nativos africanos). A cada barulho de tiro – assustador através das poderosas caixas de som do cinema –, percebemos a violência abafada pelos próprios caçadores. Na Namíbia, local da reserva de caça controlada, esse tipo de prática é totalmente legal.
Mesmo que as famílias, de pessoas brancas, europeias, de “posses” e tantos outros privilégios, encontrem resistência fora dos limites da reserva, cada tiro de espingarda e animal morto são tolerados pela Justiça nacional. Depois de entender que acompanharemos, durante alguns minutos, um show de horrores e assassinatos legalizados, nos acostumamos, aos poucos, com a proposta do diretor: a de documentar coisas piores, à medida em que o longa avança.
Assim, o primeiro bicho é morto: um gnu, idoso e que caminha apenas alguns metros após ser atingido. Os caçadores se cumprimentam, parabenizam uns aos outros e limpam os chifres do cadáver com uma garrafa d’água. Depois, tiram uma fotografia, exibindo seu troféu.
Mais para a frente, chega a hora de uma zebra morrer. Um jovem de vinte e poucos anos, um dos membros da família austríaca de Safári, atira na zebra; que, assim como o gnu, morre rapidamente. Em seguida, os nativos negros são vistos esfolando o corpo do animal. Suas patas são cerradas e sua pele é lavada.
Por pior que seja, nada disso se compara à sequência da caça de uma girafa. A mãe da família de caçadores, uma mulher na casa dos 50 anos, aproxima-se de um grupo de girafas e dá o tiro certeiro. A vítima caminha alguns metros; mas não morre instantaneamente. O animal, lutando contra a própria dor da bala dentro de si, tenta levantar.
Os demais integrantes do grupo, as outras girafas, assistem à cena fixamente. Já os caçadores, assustados, afastam-se e aguardam. A girafa tenta levantar uma, duas, três vezes…até desfalecer por completo. Os filhos do casal de humanos se aproximam, deslumbrados pela conquista de mais um troféu.
O corpo do animal é posto, com algum esforço, em uma caminhonete, que parte para o local de esfolamento. Daí em diante, as imagens mostradas, espetacularizadas, de certa forma, encontram o ápice da exposição. Aparentemente desnecessária, sentimos a intenção de Seidl em nos provocar nojo, repulsa, e de associar todo e qualquer sangue mostrado às atitudes injustificáveis dos maiores beneficiados do neocolonialismo: os brancos europeus.
Com esse gancho, um novo tema – ou, talvez, o principal do documentário – faz muito sentido quando abordado de forma direta. Graças à edição do filme, não ouvimos nenhuma das perguntas feitas durante as entrevistas dos caçadores. Mas, na verdade, isso não atrapalha em nada o nosso entendimento diante do posicionamento político dos entrevistados.
Frases como “os negros correm mais do que nós por sua genética – e quando querem”, “a minha relação com os negros daqui é normal, eles são educados” e outros absurdos saem da boca dos brancos de maneira muito natural.
Enquanto isso, gritos de inconformidade denunciam o horror dos espectadores. “Nós estamos ajudando os animais, pois a maioria é velha”, lembra-nos o casal de irmãos de vinte anos. E, então, encontram justificativas quando a consciência ameaça pesar. Afinal, se a caça é legalizada, não há motivos para questionamentos, não é? Nem tanto.
Seidl, a partir de Safári, apropria-se da espetacularização de coisas degradantes (como a caça de animais selvagens), e denuncia as consequências atrozes do neocolonialismo à sua forma. Diante das câmeras, os personagens reais assumem uma postura teatral. Há momentos de encenação, sim, mas todo o conteúdo é realista.
Possivelmente, o diretor tenha optado por flertar com a morte, de maneira tão explícita, pela sensação de revolta provocada em quem assiste ao documentário. De fato, se a intenção de Seidl tiver sido essa, devemos parabenizá-lo pelo sucesso do feito. Safári é uma obra muito pertinente. Afinal, a arte não está à nossa disposição para o entretenimento, mas serve, sim, para expor o que há de doentio em nossa sociedade – e buscar mudá-lo efetivamente.
Ficha técnica
Ano: 2016
Duração: 1h31
Direção: Ulrich Seidl
Elenco: Gerald Eichinger, Inge Ellinger, Manuel Eichinger, Markolf Schmidt
Gênero: Documentário
Distribuidora: Pandora Filmes
País: Áustria
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