Quando o assunto são doenças mentais, a indústria cultural peca por não saber lidar com a temática de modo realista. Muitas vezes, em meio à ganância de produzir e vender conteúdo audiovisual, diversos longas-metragens ou séries de televisão abordam doenças como transtorno de ansiedade generalizada e depressão de maneira bastante irresponsável.
Produções como 13 Reasons Why, série da Netflix que fala sobre bulliyng e suicídio, são criticadas por conterem cenas detalhistas de práticas violentas – como o próprio suicídio da protagonista Hannah Baker (Katherine Langford), cuja morte é exposta passo a passo. “Há vários manuais, tanto da OMS [Organização Mundial da Saúde] quanto de associações nacionais e internacionais de prevenção do suicídio, em relação a como os profissionais de imprensa devem retratar a questão do suicídio“, comenta o Dr. Neury Botega, psiquiatra da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
O QUE É O TRANSTORNO DE ANSIEDADE GENERALIZADA?
Para que possamos avaliar quando um produto da indústria cultural se torna mais nocivo ao público do que qualquer outra coisa, precisamos entender o que são o transtorno de ansiedade generalizada e a depressão. “É a ansiedade, dimensão fisiológica e psicológica do desconforto, que nos move para a frente. Ela é natural e necessária. Ocorre que, se a ansiedade for em demasia, ela mais ‘esquentará o motor’ do que promoverá mudanças. É quando a ansiedade pode ser encarada como patológica.”, explica Botega.
O real problema de determinada produtora ou equipe, ao lançar um filme com temática suicida no mercado, é a dificuldade que esses profissionais têm de representar a depressão com certos cuidados.
Segundo o psiquiatra, ainda não se sabe exatamente o que causa depressão em um indivíduo. “Parece ser uma combinação de propensão biológica com acontecimentos da vida – da vida desde os primeiros dias da infância. Se uma pessoa é propensa à depressão, ansiedade e pressão sociais podem desencadeá-la. No entanto, se uma pessoa é muito propensa biologicamente à depressão, ela pode cair doente mesmo quando tudo está bem em sua vida”.
JUVENTUDE
Por esses motivos, a doença em questão é tratada por órgãos de saúde como uma patologia delicada. Uma pessoa com ansiedade e/ou depressão pode ter gatilhos (traumas) ativados com cenas explícitas de suicídio, por exemplo. Botega confirma a incidência da depressão em pessoas cada vez mais jovens. “Se um filme, ou série, romantizar o suicídio; se transformar a pessoa falecida em herói; se fornecer aos espectadores detalhes sobre o método letal, tudo isso pode, sim, levar pessoas mais vulneráveis ao suicídio. Vários estudos já demonstraram tal fenômeno”, descreve o especialista.
Segundo informações do Manual de Prevenção do Suicídio para Profissionais da Mídia (do Departamento de Saúde Mental; em Genebra, no ano de 2000) há duas listas gerais sobre o que fazer e o que não fazer ao tratar da questão em quaisquer veículos midiáticos (e isso inclui em manifestações culturais, naturalmente):
O QUE NÃO FAZER:
- Não publicar fotografias do falecido ou cartas suicidas;
- Não informar detalhes específicos do método utilizado;
- Não fornecer explicações simplistas;
- Não glorificar o suicídio ou fazer sensacionalismo sobre o caso;
- Não usar estereótipos religiosos ou culturais;
- Não atribuir culpas.
O QUE FAZER:
- Trabalhar em conjunto com autoridades de saúde na apresentação dos fatos;
- Referir-se ao suicídio como suicídio “consumado”, não como suicídio “bem sucedido”;
- Apresentar somente dados relevantes, em páginas internas de veículos impressos;
- Destacar as alternativas ao suicídio;
- Fornecer informações sobre números de telefones e endereços de grupos de apoio e serviços onde se possa obter ajuda;
- Mostrar indicadores de risco e sinais de alerta sobre comportamento suicida.
13 REASONS WHY
A série da Netflix, voltada para o público adolescente, desrespeitou inúmeras indicações da OMS sobre o tratamento de pessoas com tendências suicidas. Para Botega, 13 Reasons Why cometeu “pecados” quanto à forma de tratar da questão. “A própria Netflix sofreu muitas críticas e, na segunda temporada da série, foi bem mais cuidadosa. No entanto, costumo dizer que, por vias tortas, a série trouxe o assunto para as conversas nas famílias e na sociedade. Devido ao tabu, o suicídio sempre foi pouco discutido pela sociedade”, acrescenta.
“Eu diria que, no Brasil, estamos agora em um momento distinto de há cinco anos atrás. Tem havido publicação de reportagens muito boas e úteis sobre esse assunto, antes tabu nos meios de comunicação”, frisa o psiquiatra, no que recomenda um trabalho de sua autoria: “decidi escrever um livro, destinado a pacientes deprimidos e seus familiares, que trata da diferenciação entre tristeza e depressão, bem como das formas de se ajudar uma pessoa acometida pela depressão. O livro se chama A tristeza transforma, a depressão paralisa. Sairá pela Editora Saraiva no início de setembro”.
AJUDA
Se você conhece alguém que sofra de depressão, o recomendável seria que assistisse a filmes que englobem o tema, para, somente depois, avaliar se a pessoa realmente pode (ou deve) assisti-los. Graças à delicadeza e às divergências de um quadro depressivo a outro, a forma como o portador dessa doença se portará diante de determinados materiais é, de certa maneira, subjetiva.
Cuidado é o que todos deveriam tomar ao consumir produtos culturais como filmes, séries e/ou livros que abordem os transtornos citados. Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Johann Wolfgang von Goethe, é um romance publicado em 1774 que, ao longo dos anos, “ajudou” a cunhar um termo já conhecido por parte do senso comum, denominado de “efeito Werther”.
Com conteúdo depressivo e um tanto explícito, a divulgação do romance levou a uma série de suicídios, à época de lançamento. Sendo assim, um determinado pico de emulações de suicídios pode ser descrito como característica do lamentável fenômeno social.
SEMPRE HAVERÁ ESPERANÇA
Não devemos subestimar a capacidade que um material tem de despertar maus sentimentos nos indivíduos. Especificamente quanto ao suicídio, de fato, há elementos pontuais que podem influenciar em comportamentos autodestrutivos. É claro que, devido à complexidade do quadro depressivo, o diagnóstico de todas as suas causas não é o objetivo exclusivo e primordial do tratamento psiquiátrico empregado atualmente – mas, sim, sua cura.
Precisamos ter em mente que há sempre muito mais motivos para estarmos vivos do que o contrário. Depressão não é incurável, e você poderá encontrar conforto não somente em sua família ou em seus amigos, mas também em entidades que prezam pela importância de cada uma de nossas vidas. Todos merecem ser felizes – e você, ou a pessoa com depressão de sua vida, é uma delas.
*Para saber como evitar ou prevenir o suicídio, acesse os links abaixo:
- Prevenção do Suicídio – Ministério da Saúde;
- Centro de Valorização da Vida (CVV);
- Prevenção do Suicídio – Um Recurso para Conselheiros (OMS).
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