Quando tentamos entender por que o brasileiro não assiste a filmes nacionais de pronto surgem dois motivos principais: acesso e gosto. Neste texto, discutiremos como esses dois elementos se relacionam.
Há algumas semanas, a estreia do filme norte-americano Vingadores: Ultimato ocupou cerca de 80% das salas brasileiras e levantou uma discussão: é justo que filmes de grandes empresas internacionais ocupem quase que a totalidade do parque exibidor brasileiro e deixem de fora as produções nacionais, simplesmente porque avançam sobre o nosso mercado com mais dinheiro e marketing?
Em seu país de origem, os super-heróis da Marvel ocuparam somente 10% das salas. Algo muito diferente do que aconteceu por aqui, onde até mesmo De Pernas para o Ar 3 e Cine Holliúdy 2 – A Chibata Sideral, filmes que comercialmente possuem perfil para levar milhões de brasileiros aos cinemas, foram retirados de circuito para dar espaço à estreia de Vingadores.
VINGADORES POR TODOS OS LADOS
Enquanto algumas pessoas apontaram para a problemática da ocupação massiva de salas e para uma espécie de perigo de histórias únicas, outras defenderam que se Vingadores se espalhou pelo país foi porque ele mereceu; ou melhor, porque é desse tipo de filme que o brasileiro gosta. Mas como esse gosto foi desenvolvido, afinal? A quem ele serve?
A estreia de Vingadores não foi chamada de predatória à toa. O filme não chegou ao Brasil para conviver com nossas produções, mas, sim, para sufocá-las. Seu lançamento massivo foi possível graças a um vácuo na política de Cota de Tela, medida que determina limites para as estreias de blockbusters internacionais nas salas do país obrigando as redes a exibirem determinada quantidade de obras nacionais por determinado período de tempo.
No final do ano passado, o então presidente interino Michel Temer deveria ter assinado um decreto que estipulasse as normas e fizesse vigorar a lei da Cota de Telas. O decreto não foi assinado para 2019, e por isso o lançamento de Vingadores encontrou uma brecha para tomar conta das exibições do país.
Quando um filme do porte de Vingadores estreia, o estúdio não espera lucrar apenas em seu próprio território. Quanto maior a bilheteria mundial, melhor. E o Brasil, um projeto de sociedade sujeita aos desmandos de determinados grupos de poder desde a invasão colonizadora europeia, que destruiu nossas riquezas culturais, naturais, materiais e intelectuais e impôs sua própria vontade sobre nossos povos, é o lugar perfeito para arrecadação de dinheiro fácil. Sem o vigor de leis minimamente protecionistas nos tornamos quintal do imperialismo alheio. Tem sido assim desde 1500.
A disputa de forças com Hollywood é no mínimo desleal. Hoje o cinema nacional é pulsante e diverso, mas nem sempre foi assim e pode deixar de ser em breve. Primeiro, porque nunca chegamos a ter uma indústria cinematográfica consolidada como a norte-americana. Vivemos um bom momento, é verdade, mas nunca deixamos de sofrer com empecilhos de distribuição ou de centralização de narrativas, por exemplo. Segundo, porque o audiovisual brasileiro depende fundamentalmente de incentivos públicos para se manter, e graças ao cortes de verba do atual governo – um governo absolutamente entreguista e anti-povo, que despreza a identidade nacional -, assistimos ao desmonte de nosso futuro e das possibilidades de produzirmos registros variados de nosso tempo.
No último dia 6, depois de muitos protestos, o Ministro da Cidadania, Osmar Terra, assinou o documento sobre a Cota de Tela. Depois ele deve ser encaminhado ao presidente Jair Bolsonaro. A Cota de Tela é fundamental para a vitalidade do cinema brasileiro porque garante que filmes nacionais cheguem a pelo menos algumas salas de exibição e sejam oferecidos ao público. Na prática, essa medida sequer é completamente eficiente, já que não determina que tipo de filmes nacionais devem ser exibidos, o que acaba prejudicando produções mais independentes e autorais; mas é o que temos no momento – e retroceder não é uma opção.
O cinema brasileiro não possui o mesmo poder de inserção do norte-americano justamente porque o mercado identifica que brasileiros preferem filmes de Hollywood; estes são, então, os filmes “que vendem”. Sem medidas afirmativas, as redes exibidoras se abrem exclusivamente para as obras que vendem mais ingressos. Assim, ficamos vulneráveis a uma enxurrada de produções que podem até divertir, mas que quase nada têm a ver conosco. No fim das contas, tudo isso não passa de continuação dos processos de colonização de nossos imaginários – e gostos. Fazer você acreditar que o cinema nacional não presta é lucrativo para alguém.
Nosso gosto é moldado essencialmente pelo que nos é oferecido. Se não conhecemos e nos identificamos com nossas próprias obras, investimos dinheiro no que vem de fora. Melhor para eles, pior para nossa economia – o audiovisual brasileiro gera mais de 300 mil empregos no país e injeta mais de 25 bilhões de reais por ano na economia. Entretenimento nunca é “só” entretenimento. Precisamos conseguir fazer filmes, precisamos que esses filmes tenham público. Gostar de cinema nacional é também gerar demanda. Quanto mais gente disposta a ver filmes diferentes, mais diversidade haverá e mais gostos serão contemplados.
GOSTO SE DISCUTE
Não é o ser humano um ser adaptável e feito de hábitos? Formação de gosto tem tudo a ver com hábitos e com adquirir referências. Fazendo uma comparação, é bem provável que você, em algum momento da vida, tenha estranhado ou achado ruim o sabor do brócolis, da cerveja ou do peixe cru. Também é provável, então, que a certa altura alguém tenha te oferecido essa variedade de sabores e seu paladar tenha se acostumado a eles. Seguindo esse raciocínio, gostos não podem ser desenvolvidos? Identificações não podem ser trabalhadas?
Identificar-se com o cinema nacional é perfeitamente possível, desde haja alguma medida de boa vontade e vias de acesso – e daí a importância da Cota de Tela. Se você vai ao cinema e só encontra Vingadores na programação, como pode cogitar assistir a outra coisa? Sem conhecer outras narrativas e estéticas não há como gostar delas ou sentir orgulho da própria cultura. Por isso é necessário que órgãos como a Ancine possam controlar e fiscalizar o mercado interno, impondo cotas e medidas protecionistas se necessário for para garantir que os filmes nacionais circulem.
Não é por acaso que o cinema nacional tenha sido um dos primeiros alvos de cortes de verba da tropa de destruição do governo Bolsonaro. Governos autoritários e medíocres não conseguem se instalar onde há autoestima; não é fácil destruir um povo que se orgulha de si mesmo. E basta conhecer a pluralidade de nossos filmes para se orgulhar deles. Basta observar como o Brasil tem se saído nos principais festivais de cinema do mundo para acreditar que nossas narrativas são potentes, enriquecedoras e fundamentais – vide a estreia do longa Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, no Festival de Cannes deste ano; o filme está na disputa pela Palma de Ouro (um dos prêmios mais importantes do cinema) e foi muito bem recebido pela crítica internacional.
É bom deixar claro que não há o menor problema em gostar de filmes de super-heróis norte-americanos. Mas é preciso ter em mente que se você gosta somente deles é porque em algum momento isso passou a fazer parte da sua vida. Você teve fácil acesso a eles e isso moldou seus gostos. Processo semelhante não acontece entre brasileiros e cinema nacional. O cinema nacional não faz parte da vida de seu próprio povo, por isso surgem ideias de que ele não presta ou que só reproduz comédias bobas que passam na TV e violência.
Na verdade, a maioria das pessoas tem essa sensação justamente porque mesmo as definições da Cota de Tela ainda são precárias e privilegiam produções brasileiras mais comerciais em detrimento das autorais. Existe uma cadeia de preferência dos exibidores: Hollywood, cinema comercial brasileiro (comédias, filmes religiosos, etc) e em terceiro plano os filmes autorais e independentes. Sem dúvidas a Cota de Tela deve ser aprimorada, mas para tanto é preciso que ela vigore.
A melhor representação de um país é a pluralidade de sua cultura, a manifestação de suas expressões, histórias e criatividade. Que tipos de memória e identidade guardaremos para o futuro se acreditarmos em um mercado que nos leva a desprezar a nós mesmos?
Como dizem por aí, um povo sem memória é um povo fadado a cometer os mesmos erros. É também um povo fadado a estar constantemente vulnerável aos interesses exteriores. É preciso estar atento aos movimentos do mercado, e mais atento ainda às responsabilidades do governo. O direito de escolha só existe de fato se pelo menos duas opções diferentes estão disponíveis. Ter um filme ocupando mais de 80% das salas não é uma simples questão de gosto brasileiro, é imposição de mercado; é ausência de qualquer chance de escolha.
Você, que acredita não gostar de filmes nacionais, já assistiu a quantos deles? De quais gêneros? De quais diretores? Você já teve a chance de conhecer para além das tais comédias novelescas? Se não teve, por que acha que não teve? Dê uma chance ao cinema nacional! Não é necessário deixar de ver filmes de Hollywood para mudar hábitos e abrir espaço para novas experiências.
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