[ENTREVISTA] No Coração do Mundo: Contagem é o Brasil

Temporada*, de André Novais Oliveira, foi uma das mais gratas surpresas entre os lançamentos do cinema nacional no primeiro semestre deste ano. Agora, no início de agosto, Oliveira estreia em circuito comercial novamente: dessa vez como produtor de No Coração do Mundo, primeiro longa-metragem da dupla Gabriel Martins e Maurílio Martins – ao lado de Thiago Macêdo Correia, Oliveira e os Martins compõem a Filmes de Plástico, produtora mineira que tem presenteado o público brasileiro com belíssimas obras.

Tal como Temporada, No Coração do Mundo traz Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte, como palco das dinâmicas cotidianas de seus diversos personagens. Nessa nova produção da  Filmes de Plástico, entretanto, a trama vai além da crônica social e flerta com os gêneros faroeste e assalto. 

‘No Coração do Mundo’/ Divulgação

Logo na primeira cena, o filme cativa a memória afetiva do público: numa participação para lá de especial, a atriz Karine Teles interpreta uma locutora daqueles carros de declarações de amor que param ruas inteiras e deixam o homenageado envergonhado. A mensagem de amor, aqui, é de Ana (Kelly Crifer) para Marcos (Leo Pyrata). Porém, enquanto a personagem de Teles performa o texto para os apaixonados, o barulho de um tiro irrompe no local. Um homem morreu, e o crime acaba com o clima de romance.

Ana e Marcos são dois dos personagens principais do filme. Ela é cobradora de ônibus e divide a rotina entre o emprego e os cuidados com o pai doente.  E Marcos está desempregado. Vive de bicos, comete pequenos delitos e mora com a mãe, uma senhora que vende produtos de limpeza feitos por ela mesma pelo bairro.

Para além do casal, há Selma (Grace Passô), uma mulher que ama a filha e a mãe, e por isso tenta encontrar uma maneira de dar algum conforto a elas, e Rose (Bárbara Colen), mulher independente, que tem um salão de beleza e pretende ser Uber para completar a renda. Vale destacar também a participação de MC Carol como Brenda, personagem que passou um tempo na prisão e agora deseja conseguir um emprego para ajudar a avó.

Marcos (Leo Pyrata) e Ana (Kelly Crifer)/ Divulgação

A certa altura, Selma propõe que Marcos traga Ana para ajudá-los num plano arriscado, que pode resolver seus problemas de dinheiro e mudar suas vidas. É a partir daí que começa a ação.

Diferente de Temporada, No Coração do Mundo vai além do estabelecer dos afetos e dilemas cotidianos da classe baixa brasileira e confronta o território da violência por vias muito pouco óbvias, mas extremamente relevantes – tanto do ponto de vista do discurso quanto da excelência de estética e narrativa.

Dessa forma, todos os personagens do longa são, acima de tudo, indivíduos complexos, diversos, que se adaptam, sobrevivem, criam laços, desafetos e estão constantemente em busca de seu lugar no mundo. Pessoas vivendo um ciclo ininterrupto de ilusões e desilusões, expectativas e frustrações. Juntos, eles constituem um quebra-cabeças de nuances do tecido social brasileiro. 

Confira a seguir a entrevista que os diretores do filme concederam ao Francamente, querida!
Francamente, querida!: Na trilha há uma música de MC Papo que compara Belo Horizonte com o Texas. Por que vocês adotaram a comparação no filme e qual a importância do espaço físico para a narrativa? 

Maurilio Martins: Existe uma máxima sobre o ser mineiro que foi cantada e decantada a vida inteira, mas por um lado muito romântico. A apropriação que a gente faz da música Texas, do [MC] Papo, se encaixa muito com o que  pensamos, porque o Papo faz uma versão antirromântica  do que seria Minas Gerais e do que seria a região metropolitana, principalmente. Aqueles personagens que a música descreve já estavam presentes nos nossos filmes, e nesse ainda mais. A música já deve ter uns 5 anos, mas quando a gente pensou os créditos do filme, sempre pensamos nela.

Pensamos que esse espírito de “Motherfucking Texas” tem um quê de western e o filme lida também com vários gêneros. A gente brinca com vários gêneros, com uma trilha grandiosa, com essa coisa meio épica. Eu acho muito incrível essa descrição que o MC Papo faz. Ela  traduz muito do sentimento que a gente tem sobre as periferias

Os diretores Maurílio Martins e Gabriel Martins/ Foto: Isabela Martins

Gabriel Martins: Além disso, [a comparação] é uma certa fabulação do faroeste enquanto gênero; é a possibilidade desse filme de periferia flertar com uma dimensão épica que o faroeste muitas vezes tem. Então a música do MC Papo vinha para trazer um certo humor, mas também para enaltecer e enfatizar essa fabulação que está em outros pontos do filme. Ela está na forma como a gente lida com a morte, no resto da trilha sonora original que tem uma coisa meio Ennio Morricone. 

O espaço tem a ver com essa coisa do faroeste, de as regras do lugar estarem em jogo o tempo inteiro. Como o lugar funciona, como os personagens se relacionam com o que o espaço faz eles significarem.

Maurílio Martins: A gente filma a rua da própria casa, os espaços onde crescemos, os ônibus em que circulamos. Conseguimos levar esses espaços para dentro dessa fabulação que o Gabriel cita. A gente confabula o [nosso] próprio espaço a partir de referências cinematográficas, mas esses espaços, antes de mais nada, nos são familiares. A gente reinventa Contagem. Ela está lá, mas o filme não é um documentário. Ele pode servir enquanto documentário no futuro por ser um registro desse momento, sobre pessoas da periferia fazendo filme na periferia, mas a estilização está a serviço da linguagem cinematográfica que a gente imprime nesses locais.

“Duas das personagens que hoje são mulheres no filme, na ideia original eram homens”

FQ: Como vocês desenvolveram as personagens mulheres? 

MM: [Essa] era uma pergunta recorrente no Quinze (curta-metragem de 2013) e ela volta agora com No Coração do Mundo. O Gabriel também tem uma trajetória com ‘Dona Sônia’ (Dona Sônia pediu uma arma para seu vizinho Alcides, 2011)  e  Nada (2017), que são curtas com personagens principais mulheres. 

A gente é criado numa estrutura machista. Eu tento me desfazer do machismo todos os dias da minha vida  e acho que vou tentar até o último dia dela. A estrutura na qual eu fui criado é machista, mas essas personagens são fruto o tempo inteiro do lugar onde eu cresci. Eu cresci com quatro irmãs, com uma mãe muito forte e, aí é uma característica social do espaço onde eu vivo, casas chefiadas por mulheres. Eu nunca parei para pensar nessas características na escrita, mas fui percebendo que elas estavam presentes sempre. Essas mulheres acabaram florescendo na configuração das personagens.

O roteiro de No Coração do Mundo começa a ser escrito em 2012 e ele vai sendo discutido até a gente filmar em 2016. Nesse espaço [de tempo] houve uma mudança de pensamento da sociedade como um todo. Florescem discussões acerca do papel da mulher no audiovisual e obviamente a gente não passa impune por isso. Isso também nos atinge. E aí houve um questionamento sobre o modo de a gente escrever. 

Selma (Grace Passô) e Rose (Bárbara Colen) / Divulgação

Duas das personagens que hoje são mulheres no filme, na ideia original eram homens. Temos muito orgulho disso porque era um vício de linguagem, de estrutura. Então duas personagens, a Brenda, brilhantemente interpretada pela MC Carol, e a Selma, que dispensa qualquer tipo de comentário, eram homens inicialmente. 

Quando nós fizemos a alteração de gênero foi muito lindo perceber que talvez, por muito tempo, muitos outros personagens ao longo da história do cinema poderiam ter passado por esse questionamento e isso não alteraria absolutamente nada [da narrativa]. 

GM: Parte também de a gente filmar o que vê. Se fizéssemos um filme predominantemente masculino, ou com muitas personagens mulheres desinteressantes, estaríamos sendo desonestos com o mundo que vemos. E acho que filmamos também o que queremos ver. Obviamente existe uma questão histórica de que uma personagem como a Selma não teve muita chance de existir. São personagens que queremos ver. Historicamente na produtora, e a gente nem precisou lá no início fazer esse manifesto, colocamos essas personagens na tela. 

FQ: Enquanto o neoliberalismo avança pelo mundo, o cinema brasileiro vem apresentando uma leva de filmes que tocam na questão do trabalho. Como vocês planejaram falar da relação entre trabalho e indivíduo no filme?

MM: Eu acho que é importante falar até da ausência do trabalho, de como isso afeta uma camada da população já há muito tempo. O filme é permeado de personagens que não têm um trabalho formal. Tem a Ana, que é cobradora, mas essa é uma profissão que está se extinguindo; e o Miro, que trabalha numa loja. O resto ali são pessoas que trabalham muito, mas todas no trabalho informal. A Rose tem um salão de beleza que fica em uma casa e está indo para o Uber. 

Então acho que o filme acabou virando um reflexo das coisas de agora, num sentido mais amplo, mas ele já é um recorte de como as coisas funcionam na periferia. Esse ‘não trabalho’ já uma característica desse espaço social.  E não só em Contagem, é uma característica das periferias do Brasil todo.

Você tem essa massa de pessoas que movimentam a economia, chamada de informal, nesse aspecto da sobrevivência. No Coração do Mundo é um filme que discute o prosseguir a partir da falta de emprego.

*Temporada está disponível na Netflix

Trailer:
(Fonte: Embaúba Filmes/ YouTube)

Ficha Técnica: 

Direção: Gabriel Martins, Maurilio Martins

Duração: 2h

País: Brasil

Ano: 2019

Elenco: Kelly Crifer, Leo Pyrata, Grace Passô, Bárbara Colen, Robert Frank, Rute Jeremias, Renato Novaes, MC Carol de Niterói, Gláucia Vandeveld.   

Gênero: Drama 

Distribuição: Embaúba Filmes

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário