A Noite do Fogo representa o México no Oscar 2022

É a incerteza a essência de todos os 110 minutos de A Noite do Fogo (Noche de Fuego, no original; Reze Pelas Mulheres Roubadas, na Netflix), candidato do México na disputa por uma indicação na categoria de Melhor Filme Internacional no Oscar 2022. Dirigido por Tatiana Huezo, o filme conta a história de Ana (Ana Cristina Ordóñez González/Marya Membreño), uma garota que vive na isolada serra de Guerrero, zona mais pobre de um dos estados mexicanos mais violentos, com a mãe Rita (Mayra Batalla) e sempre acompanhada por suas duas melhores amigas – o pai deixou a família para trabalhar nos EUA e nunca dá notícias.

Imagem: divulgação

Nessa região, dominada por cartéis de narcotraficantes e onde o exército apenas aparece para simular alguma autoridade do Estado, o medo causado pela iminência da violência, impregnada em cada segundo do cotidiano, transforma a vida em um cruel e constante exercício de sobrevivência. O temor e a miséria são permanentes, e a morte faz vítimas como em uma roleta-russa.

Por isso, alguns partem com a esperança de uma vida melhor nos EUA. À esmagadora maioria de camponeses pobres das comunidades locais, no entanto, resta a submissão aos traficantes: aceitam trabalhar sazonalmente nas plantações de papoula raspando o látex que depois virará heroína para ganhar algum dinheiro e conseguir alguma proteção dos “empregadores”.  

As disputas entre cartéis tornam toda a conjuntura ainda mais complicada. As crianças nunca sabem por quanto tempo terão aulas, já que os professores, sempre ameaçados, vivem partindo. Os vizinhos nunca sabem quem será a próxima vítima das demonstrações de poder ou do descontentamento dos narcos. Para completar, a qualquer instante helicópteros do exército podem sobrevoar casas e cabeças despejando o veneno que, de acordo com as versões oficiais,  deveria acabar com as plantações e o tráfico. 

Inspirado livremente no romance Reze pelas Mulheres Roubadas, de Jennifer Clement, A Noite do Fogo traça um amplo panorama de como a soberania dos cartéis moldou subjetiva, social e economicamente os povoados das montanhas de Guerrero, a partir das experiências das mulheres, as mais vulneráveis a todas as atrocidades praticadas pelos poderes paralelos sob a negligência (e até a corrupção) do Estado.

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COMING-OF-AGE 

Ali, nas montanhas, a necessidade de manter-se em constante alerta é ensinada de geração em geração. Logo que entram na pré-adolescência, por exemplo, as meninas têm os cabelos cortados para se passarem por garotos. A intenção é que a não performance de feminilidade evite atrair a atenção daqueles que controlam territórios e corpos. Também muito jovens, elas começam a ser treinadas pelas mães a buscar esconderijo assim que esses homens que comunicam poder sequestrando, violando, torturando e assassinando ou traficando mulheres adentram o povoado com suas caminhonetes pretas. 

“A Noite do Fogo”/ Divulgação

Tradicional e cronológica, a estrutura narrativa do filme acompanha dos nove aos 14 anos de Ana e suas amigas, com um salto temporal lá pelas tantas que troca as atrizes crianças por atrizes adolescentes – revelando um trabalho excepcional da preparadora de elenco brasileira Fátima Toledo (Cidade de Deus, 2002). 

É nesse cenário, onde os silêncios imperam avassaladores, porque os corpos de mulheres assassinadas e deixadas como recados à comunidade ou as casas abandonadas dos desaparecidos já dizem o suficiente, que as meninas são forçadas a amadurecer de maneira austera. O passar dos anos agrava os desafios das mulheres que são mães e apresenta a brutalidade das tomadas de consciência sobre o entorno para as que são filhas, definindo o futuro como uma grande interrogação e inevitavelmente fazendo esvair qualquer brilho dos olhares. Mas é também nesse cenário que o amadurecimento estreita laços quase mágicos de cumplicidade, lealdade e apoio, possibilitando a criação de sistemas próprios de comunicação.

A temática central do crescer mulher em território hostil, portanto, faz de A Noite do Fogo um coming-of-age que vai além do amadurecimento individual, valendo-se especialmente da perspectiva da relação entre corpos, subjetividades e espaço sociopolítico. Assim, assistimos à combinação entre os conflitos típicos da juventude, como a descoberta da própria sexualidade e a rebeldia, e os significados de ser mulher numa conjuntura tão particular. Não por acaso, a diretora costuma chamar suas personagens de “garotas sementes”: são vítimas de um contexto, mas nunca vitimizadas pelo roteiro. Combativas, pensantes e multifacetadas. São a peça-chave do contraste entre o tempo do crescer, que diz respeito fundamentalmente ao que muda, e o tempo de uma conjuntura cuja duração já se perdeu no tempo, tão arraigada e opressora que parece imutável.

FICÇÃO/DOCUMENTÁRIO

Em 2018, Huezo já havia representado o México no Oscar com o documentário Tempestad, sobre duas mulheres que sofrem as consequências do tráfico humano no país. Seu trabalho como documentarista tem sido testemunha atenta de várias violências que massacram as mulheres mexicanas todos os dias, e o mesmo acontece em A Noite do Fogo.

Estreando na ficção sem abrir mão desse olhar documental acurado, a cineasta configura uma história riquíssima em personagens e ambientação, conduzida pelos sentimentos, experiências e sensações de gente que aprende desde muito cedo e a duras penas que a violência impõe regras implícitas, através das quais circulam emblemas dos poderes que dominam o lugar onde vivem e ameaçam suas vidas.

Imagem: divulgação

Logo de início há uma cena da protagonista correndo para se esconder num buraco nos fundos do quintal de sua casa. A imagem de uma garota de nove anos enfiada em vida numa cova é forte em significado e indica o tom do filme: não se trata de um simples apontamento a respeito das situações aterradoras enfrentadas pelas comunidades serranas de Guerrero. Estamos diante, na verdade, de uma obra de realismo social que tangencia o onírico ao fugir das representações gráficas da violência e investir na dimensão complexa dos significados daquilo que não exatamente se vê, mas se percebe.

A câmera de Huezo, sempre na mão, é observadora por excelência e destina tempo para que as miudezas da história na qual a realidade parece um pesadelo e as relações guardam algo de fantástico se elaborem diante do espectador. Por isso a imersão é imediata, tornando quase possível sentir o cheiro da natureza, a atmosfera pesada daquela casa vazia invadida pelas vacas, a perturbação emocional provocada pela chegada das caminhonetes pretas ou pelo barulho dos helicópteros e as respirações alteradas. Trata-se de um encontro complementar entre o registro de um tempo e de um espaço e os impressionantes desdobramentos dramáticos de uma trama atravessada por resiliência, abandono, terror, afetos, latências e noites do fogo. 

Desse encontro, comovente e ao mesmo tempo estarrecedor, Tatiana Huezo sai confirmada como uma grande contadora de histórias.  Alguém com enorme potência de discurso audiovisual. E alguém que demonstra muita habilidade ao capturar os sentidos das mais delicadas nuances da realidade, transportando-os para um universo próprio, onde o estilo visual, a forma de contar e a sensibilidade no manejo de uma temática tão difícil e relevante se retroalimentam. Sem dúvidas, A Noite do Fogo nasce com contornos de clássico.

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Trailer:

(Vitrine Filmes/ YouTube)

Ficha Técnica:

Direção: Tatiana Huezo

Duração: 1h50

País: México

Ano: 2021

Elenco: Ana Cristina Ordóñez González, Marya Membreño, Mayra Batalla, Guillermo Villegas, Norma Pablo, Olivia Lagunas

Gênero: Drama

Distribuição: Vitrine Filmes

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