Bestia: a história de uma torturadora

O diretor chileno Hugo Covarrubias decidiu não poupar o espectador da perversidade da história que gostaria de contar, e isso certamente é parte significativa do que o levou a conseguir uma indicação ao Oscar 2022 de Melhor Curta-metragem de Animação com Bestia, seu filme de 14 minutos que tem como protagonista uma mulher inspirada em Íngrid Olderöck, famosa torturadora da ditadura de Pinochet (1973-1990).

Olderöck ficou conhecida durante o regime militar como “a mulher dos cachorros”, por usar cães para torturar sexualmente presos políticos. Chegou, inclusive, a se tornar um grande nome da DINA (Direção de Inteligência Nacional), o serviço de segurança (repressão) secreto criado pelo general Augusto Pinochet. Treinou outras dezenas de torturadoras e nunca foi condenada por seus crimes. Morreu aos 58 anos, por uma hemorragia digestiva aguda.

“Bestia”/ Divulgação

Agora sua história está ficcionalizada por Covarrubias num filme em stop-motion que assume a forma de thriller psicológico e político, mergulhando na consciência e na biografia da protagonista para narrar um cotidiano que acomoda e naturaliza a barbárie.

Já de início, a personagem se apresenta num avião,  com o buraco do tiro que levou na cabeça durante um atentado. É uma boneca com cabeça de porcelana quebrada. A representação de uma mulher fissurada, que entrou para a História como alguém violenta e desapiedada, alguém que gostava de “quebrar almas”. Em seguida, somos transportados para dentro de sua rotina e de seus pesadelos. A observamos em sua casa. Também é uma mulher solitária e metódica, que todos os dias prepara o café da manhã, dá de comer a seu cachorro e sai de casa com ele rumo ao trabalho, numa região de classe média da capital Santiago.

Forte, perturbador e sem diálogos, o desenvolvimento do filme acontece a partir da crescente de paranoia da protagonista. 

Para acompanhar as novidades do cinema latino-americano, assine gratuitamente a newsletter ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA

PERVERSIDADE

Chega a ser surpreendente que tanta perversidade caiba num curto filme feito com bonecos. A sensação é de que ninguém está preparado para Bestia até finalmente terminar de vê-lo. E isso porque Covarrubias decide conduzir o espectador pela perspectiva de uma personagem que personifica os males de uma época – não para  justificar seus feitos, mas para explorar as nuances de alguém que protagonizou atrocidades, espelhando todo o sistema de brutalidade do qual fazia parte e tornando-se ela mesma um nó desse sistema. 

“Bestia”/ Divulgação

Uma mulher que normalizava a tortura como rotina de trabalho, mas que depois, em casa, era tomada pela paranoia. Escondia anotações, espalhava armas pelos cantos, permanecia em constante alerta sobre possíveis ataques de homens sem rosto (que podiam ser companheiros de trabalho, incomodados com seu “sucesso”, ou adversários políticos). Uma mulher obcecada pelo poder, funcionária, ironicamente, de um sistema de poder fundamentalmente misógino, no qual jamais poderia se tornar maior do que os seus líderes homens .

Assim, conforme o filme avança na ficcionalização da biografia de Olderöck, a partir de sua relação com a tortura, com o cachorro, consigo mesma, com os fantasmas da repressão politica e até com a desconfiança permanetente sobre os colegas e superiores de DINA, as obsessões, os métodos e as questões íntimas da protagonista se revelam diante do espectador. Somos levados a adentrar um universo onde o horror emerge pelas fraturas de uma mente e de um país.

Em Bestia, a psique dessa mulher sinistra, agente da dilacerante naturalidade do dia a dia da barbárie e perturbada por seus próprios fantasmas e pelos fantasmas que produziu em massa, transforma-se em atmosfera para um excelente thriller.

A DITADURA CHILENA NO OSCAR

Essa é a segunda vez que o Chile consegue uma indicação ao Oscar na categoria de curta animado. Em 2016, Historia de Un Oso não só foi indicado, como se tornou o primeiro filme chileno e a primeira animação latino-americana a ganhar uma estatueta.

Curiosamente, os dois curtas têm a ditadura militar como contexto. Dirigido por Gabriel Osorio, Historia de Un Oso condensa em 10 minutos, numa fabulação bastante melancólica, as violências que viveram os presos políticos, os exilados e os desaparecidos durante o regime militar pinochetista. Ao contrário de Bestia, que explora a perspectiva de uma das principais algozes do período para refletir a maldade.

Filha de alemães assumidamente nazistas, Íngrid Olderöck alcançou ser peça-chave do aparelho repressor do regime. Uma das bestas orgulhosas da ditadura sul-americana, representada no filme por uma boneca de porcelana. Um material que à primeira vista parece delicado, mas que é duro e frio. 

A porcelana tem um apelo de imagem forte na obra. Na inexpressividade da protagonista, no simbolismo da rachadura da bala que perfurou sua cabeça mas não a matou. Um trauma visual que irradia leituras sobre os tantos traumas do país. 

Embora curto, então, Bestia exige estômago do espectador. Não se trata de um filme agradável, muito menos fácil. Mesmo assim, é imperdível: pela história que conta, por sua forma lancinante de thriller,  por sua excelência técnica  (o trabalho de som impecável, a riqueza de detalhes na composição das cenas e construções de cenários, os desenhos de personagens). Um curta que choca pelo conteúdo e fascina pela feitura. 

Bestia é uma das atrações da 33ª edição do Curta Kinoforum, o Festival Internacional de Curtas de São Paulo, que acontece entre os dias 18 e 28 de agosto. Outros vários curtas latino-americanos integram a programação do evento. Acesse o site oficial do festival e confira.

Para acompanhar as novidades do cinema latino-americano, assine gratuitamente a newsletter ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA

Leia também: “Los Huesos: o fim do casamento entre o Chile e suas heranças malditas”

Ficha técnica

Direção: Hugo Covarrubias

Duração: 14 min

País: Chile

Ano: 2021

Gênero: Animação

Distribuição: —

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário