Carvão: a degradação de uma família tradicional

“Não há mais absurdo no Brasil. Carvão é a minha tentativa de compreender isso. Como chegamos a esse ponto?”, declarou a diretora Carolina Markowicz à revista Variety na exibição do filme em San Sebastian. Em seu primeiro trabalho como diretora e roteirista de longa-metragem, Markowicz conta uma história de degradação familiar onde frustrações e desejos reprimidos se transformam em hipocrisia e absurdos normalizados.

No centro da trama, uma família pobre do interior do Brasil composta por avô, mãe, pai e filho. A mãe, Irene (Maeve Jinkings), é a liderança prática da família. É ela quem organiza as coisas, sustenta o dia-a-dia, vende comida para fora e toma conta do filho e de seu pai acamado, que já não fala nem ouve. Jairo (Romulo Braga), marido de Irene, trabalha na carvoaria que eles mantêm no quintal de casa, mas é um sujeito distante. Fala pouco, trabalha pouco, bebe muito, vive insatisfeito e deslocado. Ao pequeno Jean (Jean Costa) cabe o papel de observador atento. A inocência e a curiosidade típicas da infância o fazem perceber as contradições do lugar em que vive e das pessoas que o cercam. Às vezes o menino questiona essas contradições com comentários afiados, outras vezes ele apenas sucumbe à realidade que se impõe meio incompreensível.

Um dia, a enfermeira responsável pelo acompanhamento da saúde do pai de Irene oferece à família uma oportunidade insólita de sair do aperto: em troca de muito dinheiro, eles devem abrigar em casa um traficante de drogas fugitivo, interpretado pelo argentino César Bordón (Relatos Selvagens, 2014). A vinda do homem transforma as dinâmicas da família desde o momento em que o acordo é fechado e “ajustes” precisam ser feitos para recebê-lo, selando um ponto de não retorno e servindo de estopim para uma sucessão de acontecimentos no mínimo inesperados.


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ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA

SOBREVIVÊNCIA

Há um humor ácido que percorre toda a extensão de Carvão, revirando o  universo corroído de uma família que vivia inerte, conformada a performar papéis morais, religiosos, de classe, gênero e orientação sexual sem esperar grandes coisas da vida. Até que chega esse elemento estrangeiro e catalisador, um traficante cheio de dinheiro que vive (ou pensa viver) sob as próprias regras e que de alguma maneira desafia a apatia de pessoas condicionadas a cumprir com o que se espera delas.

“Carvão”/ Divulgação

Diante da oportunidade de dinheiro fácil, de mudanças imediatas, embora paliativas, as frustrações mais genuínas finalmente vêm à tona e a coisa sai de controle. Linhas são cruzadas, limites de certo e errado são borrados. Cresce a decadência e o patético num ambiente doméstico que nunca teve como fundamento os afetos ou o cuidado, apenas as obrigações, os conformismos, as solidões, as privações…

A atmosfera de podridão e hostilidade que ronda essas vidas se instaura como atos cotidianos. O absurdo oscila em movimentos que não podemos prever, até atingir extremos e se retroalimentar. Entre esses movimentos, percebemos os sintomas do profundo mal-estar causado pela impossibilidade de poder ser e viver como se deseja. 

Sem fazer juízos de valor sobre seus personagens, Markowicz trabalha os meandros da crise desse ecossistema familiar sob o ponto de vista da reação desorganizada e da sobrevivência, que deixa de ser apática e conformada para tornar-se mais brutal e ansiosa. Assim, enquanto o teatro de família modelo continua para os vizinhos, principalmente durante as idas às missas, dentro de casa o improviso passa a valer como modo de vida.

UM RELATO SELVAGEM

Carvão foi rodado em Joanópolis, interior de São Paulo, uma cidade próxima à qual a diretora cresceu, e ela confessa conhecer bem esse ambiente rural e retrógrado. “Lá, vivenciei tudo o que uma pequena cidade conservadora pode oferecer: pessoas cuidando da vida umas das outras, famílias unidas pelo fato de que ‘a família deve ficar unida’, casamentos onde os casais quase se odiavam (mas como é vergonhoso ser solteiro, vamos manter o status quo!). E claro: você pode ser um assassino, mas por favor não seja gay.”

Divulgação

Dentro dessa realidade que naturaliza a pobreza, a homofobia e as sobrecargas das mulheres, onde as violências coletivas e individuais quase nunca encontram espaço para serem devidamente elaboradas por quem as sofre, as definições de absurdo vão se perdendo no horizonte. Daí abre-se espaço para que a vazão das tensões permanentes aconteça num vórtice de hipocrisias e insensibilidades. 

O que a diretora faz, portanto, é conduzir texto e imagem de modo a sobrepor as camadas de contradições que degringolam dentro da casa dos protagonistas e em seu entorno. E o resultado é um filme que dá frio na barriga, que extasia ao mesmo tempo em que causa desconforto e arranca risos constrangidos com suas altas doses de absurdez brasileira.

Carvão é drama e suspense de qualidade. Mórbido e mordaz numa medida muito acertada. Enérgico e intoxicado. Surpreendente umas tantas vezes. Por isso, correndo o risco de ser injusta com a autenticidade da obra, digo que esse poderia ser facilmente o nosso Relatos Selvagens.

Destaque para o perspicaz Jean, que com toda a expressividade carismática de Jean Costa nos carrega pela mão nessa jornada. Como ele, a princípio inocentes, percebemos e contestamos o que nos é apresentado – até o momento em que aceitamos que, em alguns casos, o absurdo é caminho sem volta.

Leia também: “Alice Júnior: o coming-of-age que faltava no cinema nacional”

Ficha Técnica:

Direção: Carolina Markowicz  

Duração: 1h47

País: Brasil

Ano: 2022

Elenco: Maeve Jinkings, César Bordón, Jean Costa, Camila Márdila, Romulo Braga, Pedro Wagner, Aline Marta

Gênero: Drama

Distribuição: Pandora Filmes

COMENTÁRIOS

1 comentário em “Carvão: a degradação de uma família tradicional”

  1. adorei!
    esse texto é tão bom, que primeiro, parece uma literatura, poderia muito bem ser uma, duas páginas de um bom livro. E segundo, o texto explicando o filme, ao mesmo com detalhes e sem dar “spolier”, me deixou com vontade de ver o filme.

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