Você já deve ter reparado na imensa quantidade de filmes que abordam o nazismo de alguma forma, certo? O cinema se apropriou do assunto para criar filmes que vão desde aventuras, em que os vilões são os nazistas, como é o caso de Indiana Jones: Os Caçadores da Arca Perdida (1981), passando pelo emocionante drama O Menino do Pijama Listrado (2008), até o clássico A Lista de Schindler (1993).
Mas, o que raramente reparamos é que, pelo fato do cinema ser essencialmente político, assim como qualquer outra arte, sua relação com o regime totalitarista alemão – responsável por um dos maiores genocídios da humanidade – também não deixa de ser política. Há algum tempo, os nazistas são vistos como vilões pelo cinema, e histórias emocionantes falam sobre as vítimas daquele sistema. Mas nem sempre foi assim.
O documentário alemão A Hollywood de Hitler (2017) mostra como a sétima arte foi usada pelo regime nazista, como ferramenta de propaganda partidária e de alienação de massas. De acordo com a obra, ao longo do Terceiro Reich (entre 1933 e 1945) foram feitos aproximadamente mil filmes. Cerca de 300 deles eram melodramas, muitos eram musicais e operetas, outros eram histórias de detetives e investigações. Mas, todos possuíam algo em comum: suas narrativas tinham o propósito de passar mensagens sutis de obediência, subserviência e adoração ao Partido; além de justificar o controle, a vigilância e o ódio como formas de proteção contra os “inimigos do sistema”. Esses filmes eram vendidos como “apolíticos”, mas, na verdade, foram tão politizados que, hoje, nos fornecem registros de uma sociedade fundada na ignorância.
Durante o período de pouco mais de dez anos do Terceiro Reich, o cinema autoral foi tragado. Cinema era sinônimo de propaganda do Partido Nazista e Joseph Goebbels – Ministro da Propaganda da Alemanha Nazista – se tornou basicamente o único cineasta da nação. Ele era responsável por fiscalizar ou criar argumentos e roteiros, e tudo passava por sua supervisão. Em consequência disso, muitos dos cineastas alemães fugiram e se exilaram. Os que ficaram, tiveram de se adaptar à narrativa do Partido ou passaram a fazer filmes tão independentes que passavam despercebidos pela censura. A produção cinematográfica era tão comercial – intensa e moldada –, que o cinema alemão foi apelidado de “Hollywood de Hitler”.
As mensagens propagadas pelo cinema falavam sobre como a nação alemã e nazista era feliz e realizada, como a qualidade de vida era incrível, como os jovens não deveriam aderir ao estilo de comportamento da juventude comunista e “sem pudores”, e como era necessário servir ao país. Mas, nem sempre essas mensagens eram escrachadas. Os filmes cumpriam a função de transmitir padrões ideológicos e de comportamentos sutilmente, mesmo que nunca de forma inofensiva. Isso se deu, em boa parte, graças ao Star System (Sistema de Estrelas) e ao melodrama, que, juntos, possibilitaram o sucesso das engrenagens da máquina de propaganda.
Assim como Hollywood, o cinema alemão nazista produziu estrelas de cinema que foram adoradas pelo público e serviram como exemplo de estilo de vida (Star System). Somada à influência das estrelas de cinema, o melodrama também foi utilizado amplamente – por se tratar de um recurso eficaz em internalizar emoções e irracionalidades. Dessa forma, uma narrativa, a princípio simples, foi capaz de transmitir o recado com eficiência.
Além disso, a indústria cinematográfica alemã se adaptou à demanda do público, de acordo com o contexto social da época. Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, os filmes tinham que agradar as mulheres – levando em conta que a maioria dos homens estavam nas batalhas. O documentário mostra que, durante esse período, até existiram alguns filmes protagonizados por mulheres “fortes”, mas sempre até certo ponto. No fim, o conservadorismo vencia e sugeria às mulheres, sutilmente, que “se comportassem”, como era o esperado. Isso, sem falar dos padrões de beleza estabelecidos por causa das grandes estrelas.
Esse comportamento das produções nazistas indica que, assim como o capitalismo, regimes totalitários podem se apropriar de demandas de minorias – como o feminismo –, para exercer seu domínio. Nesse caso, as atrizes e suas personagens faziam parte desse mecanismo de apropriação. Daí a importância de estarmos sempre atentos aos movimentos do mercado e do marketing – o filme Lída Baarová (2016), biografia da atriz checa que, durante a Segunda Guerra Mundial, se tornou amante do ministro Goebbels e foi convidada para trabalhar no cinema alemão, está disponível na Netflix. A partir dele, é possível ter uma noção de como funcionava o sistema de estrelas.
É importante ter em mente que o cinema “diversão”, baseado em entreter com celebridades e melodramas, foi um dos grandes feitos do nazismo, porque, supostamente apolítico e inofensivo, conseguiu se converter em uma arma ideológica tão forte, que chegou a afetar até mesmo a própria Hollywood. Segundo pesquisas contidas no livro A colaboração – O pacto entre Hollywood e o nazismo, desde o início da década de 30, e principalmente depois que Hitler assumiu o poder, Hollywood, para não perder o lucrativo mercado alemão e o de territórios sobre seu domínio ou influência, se submeteu a diversas exigências do governo nazista.
Em outras palavras, se por um lado o cinema americano glorificava suas produções e usava as sessões para transmitir notícias sobre os heróis que lutavam contra o “malvado império de Hitler” – como podemos constatar em Capitão América: O Primeiro Vingador (2011) –, por outro, eles estavam também fazendo concessões cinematográficas para não perder o mercado nazista.
Assim como a ascensão do nazismo – que foi um longo processo, e não algo que surgiu do nada –, sua derrocada, junto à do cinema de propaganda, também foi gradual. Mesmo depois de 1945, quando oficialmente caiu o império de Hitler, alguns dos cineastas que aderiram à produção cinematográfica do Partido continuaram produzindo obras com essas temáticas. Aos poucos, as atitudes de Hitler e seus simpatizantes passaram a ser execradas pelo mundo e, hoje, quando o cinema trata de nazismo, o viés é outro.
O documentário A Hollywood de Hitler tem quase duas horas e muitas imagens de arquivo – o que é fantástico para termos contato com obras anteriormente inacessíveis –, mas é muito denso, possui muita informação e exige predisposição do espectador. Trata-se de uma obra importantíssima, se vista do ponto de vista do registro histórico. O longa resgata uma parte da História mundial, do cinema e da comunicação, que ignoramos por falta de acesso a materiais como esse filme. O longa foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2017 e ainda não há previsão para estreia em circuito comercial, mas vale a pena ficar de olho.
Ficha técnica
Direção: Rüdiger Suchsland
País: Alemanha
Ano: 2017
Gênero: Documentário
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