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Lançado pela Netflix na mesma semana em que se cumpriu meio século do golpe militar que destituiu o presidente chileno Salvador Allende, El Conde, de Pablo Larraín, satiriza a figura do general Augusto Pinochet, líder da ditadura civil-militar instaurada no Chile pós-golpe, transformando-o num vampiro decadente e moribundo.
No filme, o vampiro Augusto Pinochet (Jaime Vadell) nasce Claude Pinoche, um menino órfão que serviu como soldado no reinado de Luís XVI e desertou quando o povo se rebelou durante a Revolução Francesa. Pinoche carregou através dos séculos sua obsessão pela cabeça guilhotinada de Maria Antonieta e passou os anos combatendo revoluções populares, até finalmente se estabelecer no Chile com o nome de Augusto Pinochet e ascender ao poder.
Anos mais tarde, o vampiro que muito se orgulha de ter matado “centenas de vermelhos” vive exilado num local ermo, em profunda decadência física e emocional, sentindo-se humilhado por acusações de corrupção (jamais pelas de assasinato). Ele está disposto a finalmente parar de se alimentar de sangue e corações pulsantes e morrer, mas sua decisão provoca uma crise familiar: os filhos querem saber sobre seus direitos à herança, sobre as benesses que o pai acumulou em seus tempos de poder.
Um prólogo conduzido por uma voz feminina que fala em inglês (cuja identidade é revelada somente no final) apresenta a trajetória do vampiro que precisou contentar-se com sangue sul-americano. A partir daí é dado o tom do filme: a ironia como fio condutor se apresenta nos detalhes do texto, na contradição entre a autoimagem criada/performada por cada um daqueles personagens e a realidade infame de suas condições históricas; entre o que eles acreditam representar e o que de fato representam.
É logo de início também que Larraín, diretor e corroteirista, estabelece a atmosfera do longa impregnando a narrativa de contornos góticos, gore e expressionistas. Filmado em preto e branco, El Conde se aventura entre o humor (talvez não o humor que faz rir, mas o que constrange), o horror e o político, manipulando forma e conteúdo para criar seu próprio registro daquele que foi um dos grandes vilões da história chilena – um vilão com capa de general.
Como é comum na filmografia de Larraín (diretor de filmes como “No” e “Neruda”), El Conde não se pretende político, ele nasce essencialmente político. Um filme polêmico, já que a sátira, ácida e contundente, repassa os crimes cometidos durante a ditadura sob o ponto de vista (ironizado) de quem os cometeu.
E embora associar uma ditadura sanguinária a um líder sanguinário possa parecer uma cartada óbvia demais, a metáfora cresce consideravelmente quando Larraín opta por extrapolar o indivíduo Pinochet e relacionar o vampirismo ao experimento ultraliberal implementado no Chile durante a ditadura, num arco que tem a ver com a mãe também vampira do vampiro protagonista.
Para o final, El Conde nos reserva uma sequência de cenas onde representantes do exército, da Igreja, da família tradicional, da política e do empresariado apunhalam-se sem pudor, desmanchando qualquer farsa de nobreza ou decoro. Gente deplorável. Figuras que compõem a lógica do fascismo, suas várias frentes, e que servem aos interesses das bestas que nunca desistem de seguir parasitando. Bestas que raramente são punidas e que não deixam de existir facilmente. Que vivem sempre à espreita, à espera do início de uma nova oportunidade na ciclicidade da história.
Vencedor do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza 2023, El Conde executa com maestria e estilo a complicada missão de trabalhar memórias da ditadura chilena a partir dos delírios de poder dos algozes do período – feito alcançado também pelo curta-metragem de animação Bestia, protagonizado por uma agente da polícia secreta de Pinochet.
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