O Big Brother Brasil começou há menos de 20 dias e definitivamente não se fala em outra coisa na casa mais vigiada do país: Hana Khalil. Aliás, tanto dentro quanto fora da casa, todas as ações da participante viraram estopim para o início de debates sobre machismo, violências simbólicas e a importância do feminismo.
A nova edição do reality show mostrou a que veio desde a divulgação da lista de participantes. Se no BBB18 a intenção já era polemizar posicionamentos sociais a partir da interação de confinados mais diversos – uma vontade que funcionou, até certo ponto -, dessa vez, o intuito parece ser mesmo o de potencializar a narrativa esperada. Para isso, estereótipos muito precisos – e opostos – foram selecionados.
Nesta edição, a produção mesclou pessoas engajadas e militantes de diversas causas sociais (movimento negro, movimento indígena, feminismo, veganismo, movimento lgbt) com pessoas alienadas do mundo que existe fora de suas bolhas. Em pouco tempo, essas diferentes vivências separaram a casa em dois grupos principais: o Camarote (em alusão às baladas paulistanas que não permitem a entrada de pessoas que não correspondem a determinados padrões) e o Baile da Gaiola (em homenagem a um baile funk, um movimento mais popular).
BIG HANA BRASIL
Carioca, vegana, bacharela em cinema, feminista, youtuber e integrante do grupo Baile da Gaiola, Hana rapidamente passou a incomodar as masculinidades frágeis dos homens do grupo Camarote; homens brancos, de classe média, bombadinhos, héteros…o supra sumo do privilégio social. Homens que mal entraram no programa e já gastaram parte de seus dias reproduzindo os mais variados clichês machistas inaceitáveis.
Logo de inicio, analisando seus oponentes de jogo, eles comentavam, entre si e durante conversas de fraternidade masculina, que Hana parecia ter uma “personalidade explosiva” e que, mais para frente no jogo, ela poderia ser um problema. Na realidade, não demorou muito para que Hana fosse considerada como um problema real para eles. Traduzindo: Hana nunca explodiu com eles, mas, para ela se tornar uma ameaça, bastou notarem que a carioca tem tendência a se impor e a retrucar sobre coisas com as quais não concorda.
Hana tem personalidade forte, isso é inegável. Sua presença não passa despercebida. Mas ela é assim, expansiva, extrovertida, falante, espalhafatosa, comunicativa, brincalhona, independente e descabelada. E tudo bem que ela seja assim. Ou não. Não para homens que são acostumados a não serem questionados sobre nada, homens conservadores que possuem visão limitada e retrógrada de mundo; homens que se sentem ameaçados por mulheres. Isso tudo porque a masculinidade desse tipo de homem é tóxica e muito, muito frágil. Colocar a culpa das próprias inseguranças e questões no outro é muito mais fácil – principalmente se a sociedade for misógina e esse outro for uma mulher.
É nesse cenário que a visibilidade natural de Hana, um ser expansivo, passou a constranger masculinidades que não aceitavam não ser o centro das atenções. De repente, as mínimas ações da jovem começaram a incomodar. O curioso é que nenhum desses homens chegou até ela para comunicar alguma ação que de fato fosse prejudicial ao convívio do grupo. Em vez disso, gastaram horas fazendo fofoquinhas sobre o simples existir de Hana. Torcendo, vejam vocês, para que alguma mulher tomasse a frente e arrumasse uma briga com a participante.
Estamos em 2019 e os homens do Big Brother Brasil ainda esperam pegar suas pipoquinhas para acompanharem brigas de mulher; porque homens são seres racionais e mulheres são barraqueiras. Enquanto não houver barraco, lá estarão eles, inconformados que mulheres sabem conviver civilizadamente e não saem arrancando os cabelos umas das outras aleatoriamente. Vou precisar traduzir de novo: eles não têm coragem de encarar Hana e ficam o dia todo tentando montar uma picuinha na intenção de que alguma mulher vá brigar com ela por eles. Informações chocantes para 5ª série do ensino fundamental: até o fechamento deste texto, nenhuma mulher puxou o cabelo da outra no programa.
Como resultado das fofoquinhas dos homens do Big Brother Brasil 2019, temos duas listas.
Lista de coisas que Hana não deveria fazer, de acordo com a visão dos homens privilegiados do programa: não pode falar palavrão, ser engraçada, expansiva, engajada, andar com a roupa que quiser, ter opinião própria, beijar do jeito que quiser, não pode viver em harmonia com outras mulheres, não pode falar alto, não pode comer o que quiser, não pode ganhar provas do líder e, de preferência, seria bom se ela parasse de usar seus colares na cabeça para não chamar atenção.
Lista de coisas que a Hana pode fazer: ser bela, recatada, do lar e não atrapalhar o jogo dos marmanjos (um jogo que parece bem medíocre, baseado na falta de personalidade dos mesmos e em suas tentativas frustradas de, a todo momento, tentar fazer um VT limpando a casa ou fingindo autoestima inabalável).
A edição 2019 ainda não alavancou. Os conflitos esperados não acontecem simplesmente porque o contexto brasileiro, por si só, já deixou todo mundo cansado. Para a surpresa de Boninho (diretor do programa) e companhia, os militantes não querem ficar palestrando para gente que parece querer seguir a vida sem entender nada além de seu umbigo, e essa gente, por outro lado, parece não querer bater de frente com os militantes.
Nada acontece no BBB19 e a única coisa que ainda movimenta o espetáculo é: Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana, Hana.
Todos falam de Hana. Os participantes falam de Hana, incomodados com a sua existência, com o seu respirar. A internet fala de Hana, amando-a ou odiando-a. A culpa sobre tudo é colocada na conta de Hana. É o Big Hana Brasil.
OS 20 E POUCOS ANOS
Em 2018, os homens do Big Brother Brasil também perseguiram Gleici e Ana Clara. De acordo com eles, Ana Clara era arrogante e prepotente por expor suas opiniões e não aceitar ser avacalhada pelos demais; e Gleici, de personalidade mais retraída do que a amiga, seria uma planta sem graça e folgada.
O caso de Hana não é muito diferente do de suas antecessoras. Além de ter a mesma idade de Gleici e Ana Clara, sua força e autonomia causam medo – afinal, trata-se de um programa de exposição, e vence quem cativar mais o público. Nesse sentido, o potencial de Hana é ameaça direta aos outros concorrentes. Sua liberdade incomoda porque, enquanto a jovem vive sua verdade do jeito que bem entende, os demais caem na armadilha de acreditar que autenticidade tem a ver com fazer o que a sociedade espera que eles façam como “homens de bem”. Ninguém aguenta mais o mito do homem de bem.
Outra coisa que tem tirado o sossego dos brothers é o relacionamento de Hana com o participante Alan. Os homens juram que Alan está enfeitiçado pela bruxa malvada Hana e que, por isso, não fechou parceria com eles. Parece muito óbvio para eles que Alan deveria ser amigo do Camarote.
Seria esperado que o rapaz, um homem branco, hétero e também privilegiado, formasse parte do grupo dos “macho alfa”, mas o brother se sentiu mais à vontade com a Gaiola. Ele gosta de sentar e ouvir as conversas; ele parece gostar de aprender com as vivências dos companheiros que pertencem a realidades muito diferentes da dele.
Mas nada disso sequer passa pela leitura dos outros homens, alienados da possibilidade de outras realidades. Ao não fechar com o Camarote, Alan se tornou um traidor. Não faz sentido que ele, privilegiado, sinta-se mais acolhido por Hana e seus amigos negros, gordos e militantes. Por culpa da aproximação com Hana, um bom moço “se perdeu no jogo”, está mantido em cárcere privado, impedido de falar com os outros participantes e a família dele deve estar desapontada com o comportamento do rapaz, dizem.
Em 2018, o relacionamento de Gleici com Wagner também foi questionado. Outros participantes chegaram a dizer que no Acre existem Gleicis por todos os lados, sugerindo que Gleici não tinha nada de especial a oferecer num relacionamento e que nunca que um homem como Wagner sentiria interesse genuíno por ela.
Na época, os homens também “brincavam” dizendo que era necessário desestabilizar Gleici e Ana Clara, jogar a comida de Gleici fora e outras coisas do tipo. O mesmo vem acontecendo no BBB19. A amizade de Hana com outras mulheres também incomoda. Além disso, o participante Diego já declarou diversas vezes que Hana é grosseira, mal educada, espalhafatosa e que precisa ser disciplinada. Ele e Gustavo (eliminado) cogitaram acabar com a comida vegana dela ou impedi-la de dormir, mesmo sem a sister ter feito nada diretamente contra eles – a não ser existir, claro, porque o simples existir de uma jovem bem resolvida é uma afronta à zona de conforto de homens que não abrem mão da segurança de suas verdades absolutas e entram no programa com a certeza de que são a última bolachinha do pacote.
Caso Hana fosse um homem, sua personalidade seria um problema tão grande assim? Se 5 elefantes incomodam muita gente, os 20 poucos anos da mulher feminista parecem incomodar muito mais.
VIOLÊNCIAS SIMBÓLICAS NO BBB
No Big Brother Brasil, bater no amiguinho rende uma expulsão. Agressões físicas não são toleradas. As subjetivas, no entanto, costumam passar batido.
Em 2017, a participante Emilly Araújo, também uma jovem mulher, sofreu abusos psicológicos e emocionais tão graves por parte de seu parceiro no jogo que o programa foi obrigado a eliminá-lo – depois de muita repercussão negativa. Você pode gostar ou não de Emily como pessoa, mas não pode negar que o que ela viveu no BBB foi uma representação muito simbólica de como funcionam as estruturas de opressão e violência da sociedade.
Colocar pessoas confinadas dentro de uma casa vigiada 24 horas por câmeras é como retirar uma pequena amostra de comunidade e examiná-la com lentes de aumento. Cada um dos elementos dessa comunidade representam determinados papéis das dinâmicas sociais de poder.
Quando dizem que precisam disciplinar Hana, por exemplo, esses participantes fazem apologia à violência de gênero. Quantas mulheres são agredidas dentro de casa porque os maridos acreditam que são os responsáveis por domesticá-las? Só em 2017, o Brasil registrou 600 casos de violência doméstica por dia, e o número de mulheres assassinadas aumentou 6.1% em relação a 2016.
Jean Wyllys foi perseguido por outros participantes no BBB5 por ser “diferente”. Mais tarde, tornou-se o único deputado federal brasileiro assumidamente homossexual. Lutou pelo acredita num Brasil conservador (dentro e fora de reality shows) e hoje é um exilado político. Recebeu inúmeras ameaças e, recentemente, teve que abandonar seu mandato para preservar sua vida.
Tudo que acontece no BBB é reflexo do que somos fora do BBB. O conservadorismo não mudou de face desde a edição de Jean, mas hoje é muito mais fácil usar a internet para apontar casos de racismo, machismo e homofobia, como de fato tem acontecido muito nessa edição do programa.
Os homens e mulheres privilegiados do BBB19 dizem que não querem conversar sobre assuntos polêmicos no programa; que o “lado de lá tem uns papos muito cabeça”. Ele dizem que são capazes de conversar sobre qualquer coisa, mas não querem. Na verdade, eles não precisam. Os tais “papos cabeça” são “cansativos” porque são sobre opressões que não lhes dizem respeito ou que eles até reproduzem. Não é conveniente que saiam de suas bolhas confortáveis. Não há empatia nenhuma.
Daí a importância da presença da turma da Gaiola – principalmente de Rizia, Gabriela, Hana, Rodrigo e Darnley. Eles estão na trincheira do enfrentamento direto contra posturas covardes – e o melhor de tudo é que eles têm plena consciência de suas funções sociais no programa. Ao contrário do que o Camarote acredita, essas pessoas não precisam palestrar o tempo; o simples estar ali já envia mensagens importantes. Não são as “palestras militudas” que cansam o outro lado da casa, é o incômodo com o que é diferente que perturba o sossego deles.
Rodrigo é um homem gordo, negro e homossexual. Gabriela também é negra e lésbica. Eles sabem que suas presenças no programa compõem determinada narrativa e que, por isso, possuem responsabilidade sobre o que fazem e dizem em um produto de entretenimento que vai ao ar na maior emissora de televisão do país.
Além disso, os membros da Gaiola servem para lembrar o resto da casa, o tempo todo, de que o mundo não é nada cor-de-rosa, como eles gostam de acreditar que é. Por isso eles cansam o outro time. Lidar com o diferente não faz parte de seus repertórios e encarar esse diferente sem exercitar empatia provoca medo. Medo gera violência. Tantos comentários absurdos no programa não acontecem à toa: são reações violentas à explosão da bolha.
Hana incomoda por ser feminista, vegana e ter personalidade forte, mas dizem que ela causa incômodo por ser grosseira. Rodrigo incomoda por ser um negro intelectual, maduro e empático, mas dizem que ele incomoda porque ronca e não faz nada. Gabriela incomoda por ser uma lésbica que retruca falas preconceituosas, mas reclamam que ela incomoda por ser “extremista”, intolerante. Danrley incomoda por ser um garoto simples da favela que está disposto a agarrar com unhas e dentes as oportunidades que o programa oferece, mas dizem que ele incomoda porque “se vitimiza”.
Que o Baile da Gaiola siga incomodando muito, então. E mais, que siga expondo todas as violências veladas que ainda hoje são empurradas para debaixo do tapete.
As masculinidades frágeis, sedentas por controle, seguirão tentando controlar Hana. Depois, outra pessoa será alvo de outro tipo de ataque, e assim por diante. Resta saber que tipo de participante o Brasil de 2019 quer levar para a final do BBB, e se a edição deste ano vai conseguir (ou quer) bancar, com responsabilidade, os conflitos sociais que se propôs a espelhar.
Até o momento, a audiência tem denunciado manobras nos VTs para favorecer a turma do Camarote e esconder todos os preconceitos manifestados por eles. Se o reality continuar por esse caminho, de nada valerá os esforços individuais de seus melhores participantes. Para que selecionar pessoas com posicionamentos políticos tão delineados se o objeto é ofuscá-las no material que vai ao ar na TV aberta? Elas estão ali única e exclusivamente cumprindo função de iscas para atrair um determinado tipo de público? Não seria melhor, então, abandonar qualquer relação da narrativa do programa com a polarização do país, voltar às origens do entretenimento despretensioso e colocar pessoas “aleatórias” no confinamento?
Texto excelente profundo e verdadeiro Que bom se o resultado final demonstrasse que através do BBB programa meramente de entretimento mas de grande ibope na mais importante emissora do Brasil traduzisse o avanço das ideias e das forças positivas dos brasileiros. Vamos botar a Hana como vencedora do BBB19!!!