Brasil, Mato Grosso do Sul. Três jovens médicos da saúde pública são enviados a uma cidadezinha afastada no Pantanal para vacinar os moradores contra uma nova mutação do vírus da Zika. São eles, Lúcia (Paloma Bernardi), Damião (Pedro Caetano) e Enzo (Gutto Szuster), os protagonistas de O Escolhido, a mais nova série brasileira original Netflix.
Assim que chegam a Aguazul, cidade fictícia da trama, os médicos são recebidos com bastante hostilidade pela pequena população local. Ali vive uma comunidade isolada, conservadora e religiosa, aparentemente parada no tempo; seguidora de um líder secreto, repleta de mistérios e absolutamente anticiência.
Com episódios dirigidos por Michel Tikhomiroff e texto assinado pelos escritores Carolina Munhóz e Raphael Draccon, O Escolhido é a primeira série brasileira e sobrenatural da Netflix.
CIÊNCIA E FÉ
A nova produção original Netflix trabalha fundamentalmente com oposições: ciência e fé; civilização e barbárie; rico e pobre; masculino e feminino; cidade e floresta.
Logo no primeiro episódio, Lúcia, a chefe da pequena expedição, sofre machismo no trabalho e decide que precisa provar seu valor. Além disso, Enzo e Damião são apresentados como opostos diretos um do outro. Enquanto Enzo, um homem branco, representa uma classe privilegiada que conduz a medicina e a pesquisa como status e prática de mercado, Damião, negro, representa o pobre que enxerga a medicina como missão social e possibilidade de ascensão.
Depois entram os moradores de Aguazul, que rejeitam tudo que vem de fora e formam uma espécie de seita religiosa. Há anos eles se isolaram para seguir o tal Escolhido (Renan Tenca), aquele que pode curar e manter o equilíbrio do lugar em troca de lealdade e amor incondicionais de seu povo. Parte da comunidade vive embrenhada na floresta para servir diretamente ao mestre, e os demais vivem no vilarejo.
Quando os médicos impõem suas presenças sobre esse ambiente controlado e de leis próprias, outras contradições tornam-se inevitáveis. Lúcia, Damião e Enzo acreditam, por exemplo, ser representantes da civilização em meio àquilo que consideram barbárie. Ao mesmo tempo, o povo de Aguazul crê viver muito melhor sem as mazelas sociais – e os pecados – das cidades.
A própria crença religiosa da comunidade carrega em si uma contradição: ela é essencialmente constituída a partir da tradição bíblica cristã, mas também possui alguma coisa dos elementos do folclore regional.
DESENVOLVIMENTO NARRATIVO E PERSONAGENS
O ambiente extremamente controlado de Aguazul não serve apenas para criar mistérios e dar o tom do suspense. Sem qualquer tipo de interferência “do mundo real”, o lugar acaba funcionando como facilitador narrativo. Ali, numa cidade completamente isolada, pressupõe-se que tudo pode acontecer. É dessa maneira que o roteiro fica livre para conduzir os personagens mecanicamente e levar a trama para onde for mais conveniente, sem ter que se preocupar em dar satisfações sobre plausibilidade.
Com um texto repleto de diálogos expositivos e pouco espontâneos, os personagens perdem carisma e personalidade. Durante a maior parte do tempo eles são unidimensionais e só fazem brigar um com o outro. Lúcia é a mulher que tenta ser forte, independente e ponto. Enzo é o playboy rico de São Paulo que quer impressionar o pai. E Damião é o garoto da favela que superou dificuldades e conseguiu ser médico.
Para não dizer que falta carisma a absolutamente todos os personagens, Silvino (Francisco Gaspar), o único que circula entre Aguazul e o “mundo exterior” com frequência, tem simpatia e motivação de sobra. O problema é que até mesmo ele é colocado e retirado de cena quando o roteiro bem entende; sem grandes preocupações com continuidade, Silvino simplesmente vai e volta quando é conveniente – tal como acontece aos indígenas.
Da mesma forma, o folclore, que é das coisas mais ricas da tradição oral brasileira, fica totalmente em segundo plano. Em vez de optar pela sofisticação do realismo mágico, um gênero tão latino, a série aposta – pelo menos por enquanto – na possível existência do sobrenatural mais simplista como explicação para o dom de cura do Escolhido. A única pergunta constante é sempre a mais óbvia: esse líder religioso realmente possui um poder divino ou não passa de uma espécie de falso profeta?
BOAS IDEIAS, POUCA SUBSTÂNCIA
Nem a mais bela paisagem do Pantanal nem a superficial diversidade de personagens podem compensar as fragilidades que O Escolhido demonstrou ter até agora. Como resultado, a primeira temporada apresenta-se operante, mas esvaziada de essência e muito pouco magnética.
Existe valor de entretenimento na produção, sem dúvidas; porém, isso certamente não é o bastante para fidelizar a audiência ou para garantir vida longa à produção. Veremos, então, se uma possível segunda temporada terá algo a mais para nos oferecer.
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Trailer:
Ficha técnica
Direção: Michel Tikhomiroff
País: Brasil
Ano: 2019
Elenco: Paloma Bernardi, Pedro Caetano, Gutto Szuster, Renan Tenca, Francisco Gaspar
Gênero: Suspense, Drama
Distribuição: Netflix
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