Rabugenta, desbocada, escandalosa, implicante e, ao mesmo tempo, encantadora: assim é a personagem-título de Pacarrete, filme premiado em oito categorias do 47º Festival de Cinema de Gramado – entre elas melhor filme (pelos júris oficial e popular), melhor direção para Allan Deberton e melhor atuação para Marcélia Cartaxo.
Pacarrete (do francês pâquerette) significa margarida, e é como a protagonista do longa cearense gosta de ser chamada. Interpretada por Cartaxo (A Hora da Estrela), a figurona criada por Deberton, inspirada em uma conhecida senhora de sua infância, é professora aposentada de balé. Cheia de manias e convicções, ela vive em Russas, interior do Ceará, cuidando da irmã doente (Zezita Matos) e arrumando confusão com quem suja sua calçada.
Na véspera da festa de 200 anos da cidade, Pacarrete decide fazer uma apresentação de dança para presentear a população local com o que acredita ser arte de verdade, o problema é que ninguém parece se importar com seus talentos.
A ARTE E A VELHICE
Incomum nas telas de cinema, a velhice feminina (da mulher artista, especialmente) ganha delineados profundamente sensíveis em Pacarrete. Primeiro, porque é extraordinário ver o fenômeno Marcélia Cartaxo em cena. Depois, porque o diretor desenvolve com enorme generosidade e riqueza de detalhes os sentimentos e subjetividades da protagonista.
No início, Pacarrete soa apenas cômica de tão teimosa, grosseira autocentrada e espalhafatosa. Aos poucos, porém, outras facetas suas vêm à tona. Conhecemos então as inseguranças e questões que existem por debaixo da casca de mulher durona e convencida, apaixonada pela delicadeza do balé mas nada polida no trato com o outro – a não ser com o vizinho Miguel (João Miguel), cuja personalidade paciente e gentil quase sempre consegue desarmar o mau humor de Pacarrete.
A partir de uma cinematografia graciosa e estonteante, Deberton desmonta a figura malcriada que implica com todos a seu redor e quer tudo de seu jeito. O avançar da idade, de alguma forma, impõe dilemas sobre solidão e sonhos não realizados à personagem. Por isso, conseguir dançar na festa da cidade transforma-se em missão vital de autoaprovação. Consequentemente, o não entendimento dos demais sobre sua obsessão logo é interpretado como desprezo e abandono.
Como menina tropeçando no desencanto do mundo real, Pacarrete grita e resmunga tentando ser ouvida. A birra extravasa suas inquietações sobre presente e futuro, mas também, em certa medida, evidencia a trajetória de uma mulher que, para se bancar no mundo tal como gostaria, acabou associando assertividade a indelicadeza.
Trata-se, portanto, de uma grande personagem, protagonista de um grande filme. Certamente um dos melhores e mais emocionantes nacionais de 2020.
Leia também: Partida propõe respiro utópico em meio ao desencanto generalizado
Trailer:
Ficha Técnica:
Direção: Allan Deberton
Duração: 1h37
País: Brasil
Ano: 2020
Elenco: Marcelia Cartaxo, Zezita Matos, Soia Lira, João Miguel
Gênero: Drama
Distribuição: Vitrine Filmes
COMENTÁRIOS