Serial Kelly: mais melancólico que transgressor

De pronto, Serial Kelly, primeiro longa-metragem do alagoano René Guerra, se apresenta como uma tragicomédia transgressora com uma protagonista mulher forte e independente, heroína marginal de uma história de estrada policialesca e musical. Mas o trocadilho abrasileirado do título, embora jocoso e bastante chamativo, esconde a real natureza de sua protagonista: a de uma mulher solitária e marcada por toda sorte de abusos e humilhações. 

Protagonizado por Gaby Amarantos, o filme acompanha Kellyane, cantora de forró eletrônico que ganha a vida se apresentando pelo sertão nordestino, em inferninhos e praças de alimentação. Movida pela conturbação que a toma toda vez que é engatilhada pelas relações disfuncionais que experimentou com homens ao longo da vida, ela cumpre sua agenda de shows deixando um rastro de sangue por onde passa.

Kelly não é exatamente o que se espera de um serial killer. A matança, para ela, é válvula de escape. Acontece no impulso e no improviso, quando encarna essa personalidade artística dona de si e “matadora de machos embustes”, esse alter ego do exagero, que é a forma como ela expressa sua vivacidade e se resgata de seus sofrimentos.

Assim que os descuidos da impulsividade tornam seu rosto conhecido, Kelly passa a ser considerada a primeira assassina em série brasileira, um alvo certo para a opinião pública e os noticiários sensacionalistas de televisão.

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KELLY E FABÍOLA

De um lado, uma mulher talentosa, cheia de energia e assassina em série de homens. Do outro, uma delegada, Fabíola (Paula Cohen), tentando conduzir o caso com alguma dignidade e sempre sendo boicotada por seus colegas homens. 

Elas demoram a se encontrar, mas estão ali falando sobre estruturas de poder de um país misógino. São elas duas, a Kelly de Amarantos e a Fabíola de Cohen, exaustas, frustradas, desoladas, tão cheias de raiva quanto cheias de si, que garantem a presença de espírito do filme.

KELLYANE, UMA EXPRESSÃO INTERROMPIDA

Serial Kelly comporta bem a atmosfera de exagero do brega e considera a força política dos corpos de sua protagonista e das mulheres que ela encontra pelo caminho (o filme é dedicado in memoriam à travesti Roberta Gretchen), mas tropeça na própria forma ao não conseguir desvencilhar-se o suficiente da melancolia da realidade.

“Serial Kelly”/ Divulgação

Havia uma história que essa mulher preta, pobre, gorda, nordestina, estrela em ascensão e matadora gostaria de contar sobre si mesma com a sua arte, mas essa trajetória  de expressão é interrompida pela tirania das imposições da realidade (os oportunismos, as traições, os golpes e violências).

Em meio a tudo isso, o acúmulo de tragédias se sobrepõe ao que deveria ser transgressor, e as mensagens sobre violência de gênero, empoderamento feminino e sororidade emergem meio rasas ou prontas demais. Não é possível, por exemplo, que o único “tempero” não de todo trágico ou melancólico a ter tempo de tela nessa jornada da heroína seja a relação – outra vez disfuncional – da protagonista com o tal Tempero (Igor de Araújo).

A montagem também não ajuda. O filme é popular, pulsante, um bom exercício de gêneros, mas soa apressado emendando uma cena à outra como num quebra-cabeças de situações um tanto mal-ajambradas. Assim, Kelly (e até mesmo Fabíola) termina encurralada pelo que esse contexto de misoginia de raízes poderosas e absurdas sempre prometeu a alguém como ela. Já o filme, apesar de seu olhar aguçado sobre o nordeste contemporâneo, termina por não ser tão propositivo quanto prometia ser. 

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Ficha Técnica:

Direção: René Guerra

Duração: 1h20

País: Brasil

Ano: 2022

Elenco: Gaby Amarantos, Paula Cohen, Igor de Araújo, Marcio Fecher, Thomas Aquino, Thardelly Lima

Gênero: Drama / Comédia

Distribuição: Vitrine Filmes

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