Você já deve ter reparado que, nos últimos tempos, a Netflix adicionou uma infinidade de séries policiais de língua não-inglesa ao seu catálogo, não é? Algumas são produzidas pela própria Netflix, outras são distribuídas mundialmente pela plataforma como produções originais. Dentre as opções temos títulos como Glacé (França), O Bosque (França), Tabula Rasa (Bélgica), La Trêve (Bélgica), Trapped (Islândia), La Casa de Papel (Espanha), Quatro Estações em Havana (Cuba/Espanha) e O Mecanismo (Brasil).
Essa investida da empresa sobre o gênero policial acontece, principalmente, porque tramas policiais são universais, formulaicas e engajantes. A princípio, assistir a uma série estrangeira demanda predisposição do público e desenvolvimento de hábito, afinal, a globalização nos condiciona a aceitar o estilo de vida americano e o inglês como conexões padrões com o exterior. Nada melhor para amenizar os estranhamentos entre diferentes línguas e culturas, então, do que narrativas envolventes que despertam curiosidade no público ao longo de seus episódios.
Ao apostar em séries policiais dos mais diversos países, a Netflix garante duas frentes de atuação importantes: com um mesmo produto ela agrada ao público do país de origem da obra seriada e ainda consegue distribuí-la com algum grau de familiaridade para todos os outros mais de 100 países onde o serviço está presente. Ou seja, uma série policial torna-se ótimo investimento porque conversa com os mais distintos públicos e dificilmente sofre com grandes taxas de rejeição – levando em conta que intrigas, mistérios, investigações e reviravoltas costumam agradar audiências de todo lugar.
No texto “Você já deu uma chance para as séries de língua não-inglesa?” listamos três dicas sobre como ampliar o seu reportório de séries para além das produções americanas e britânicas. Em um dos itens, mencionamos que é importante começar pelos temas que mais interessam. É justamente nesse contexto que as séries policiais de língua não-inglesa se encaixam. Na tentativa de deixar o catálogo o mais universal possível, sem perder a identificação do público nichado, mas buscando atender a variados países, a plataforma escolhe as séries de investigação como saída um tanto quanto confortável.
Tudo isso justifica a enxurrada de títulos policiais disponíveis no catálogo da plataforma de streaming. Mas, como nem tudo é preto no branco e estamos falando de produtos culturais que lidam com contextos e subjetividades, alguns impasses também surgem, fazendo com que este tipo de obra esteja sujeita a ser tanto algo genérico quanto um achado – destino que vai depender da qualidade e do carisma da produção em questão.
Tomemos O Mecanismo como exemplo. No Brasil, a série causou polêmica por tratar de assuntos que estão “no olho do furacão” – se de forma acertada ou não é outra discussão. Por aqui, os conflitos políticos seriam o suficiente para angariar audiência, considerando que dizem respeito, de certa forma, a nossa realidade. Já para o público estrangeiro, as investigações e intrigas podem ser muito mais interessantes do que a rixa de ideologias na qual estamos inseridos como nação. Assim, uma vez lançada ao mundo, a série de José Padilha pode parecer somente mais uma obra policial genérica dentre tantas outras.
Por outro lado – e apesar de aderirem a padrões do gênero -, séries policiais não são opções ruins quando o espectador busca por produções de países diversos. Como já mencionamos antes, elas proporcionam um certo ar de familiaridade e estabelecem vínculos com o espectador. A curiosidade causada pelas tramas policiais e de investigações engajam o público e auxiliam na superação da resistência a novos idiomas e costumes.
Além disso, esse tipo de série costuma misturar o gênero policial com algum outro (geralmente o drama). A partir dessa junção, tramas um pouco mais elaboradas e com características muito mais locais podem surgir. Devemos considerar também que qualquer produção cultural está intimamente ligada ao seu contexto de origem, explícita ou implicitamente. Assim, policial ou não, esse tipo de série pode funcionar como rica porta de entrada para o vasto universo das séries de língua não-inglesa.
Aqui cabe mencionar La Casa de Papel como exemplo. A série espanhola surpreendeu até mesmo a Netflix ao tornar-se fenômeno cultural a nível mundial. Seu enredo quase novelesco e melodramático nos fez torcer por anti-heróis que assaltam a Casa da Moeda espanhola usando máscaras com o rosto do pintor Salvador Dalí e macacões vermelhos, conquistou milhares de fãs pelo mundo e garantiu sua continuidade.
Com tanta variedade de títulos no catálogo é inevitável que algumas séries sejam melhores que outras, e aí chegamos ao eterno dilema da Netflix: a empresa deveria prezar por qualidade ou continuar investindo em quantidade? Encher o catálogo com opções de séries policiais, das mais variadas partes do mundo, pode ser, por enquanto, uma sacada muito perspicaz. O problema é que, mais cedo ou mais tarde, a diversidade de narrativas será imprescindível e séries policiais que se pareçam muito umas com as outras ficarão saturadas.
Assistir a tramas policiais na sequência sem enjoar da fórmula – ou sem se cansar de ouvir falar sobre mortes, assassinos, segredos e crimes – é bastante complicado. Então, que este tipo de obra sirva, sim, como porta de entrada para a produção audiovisual dos mais distintos lugares do mundo, mas que, uma vez incentivada a curiosidade, não paremos de procurar por diversidade de enredos e de propostas.
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