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Crítica: Corpo Elétrico
Em meio ao atual caos político nacional, obras dramáticas que se proponham a analisar a nossa sociedade de maneira simples ou subjetiva podem ser mal vistas ou, até mesmo, subjugadas. E, é por isso que, Corpo Elétrico, o novo filme do diretor Marcelo Caetano que abriu o 12º Festival de Cinema Latino-Americano – e que participou de festivais como o de Roterdã (Holanda) e o de Guadalajara (México) –, chega a ser tão especial dentro da pós-contemporaneidade brasileira. O longa-metragem imprime uma sensibilidade característica da direção, oferecendo uma experiência sensorial a partir da vivência de indivíduos comuns que, são, ao mesmo tempo, cheios de peculiaridade.
Elias (Kelner Macêdo) é um dos corpos eletrizados pelo vai e vem de sua vida em uma fábrica de confecção de roupas, também como pelo frenesi de sua liberdade sexual. Ele é jovem, gay, nordestino, representante direto do proletariado e mal consegue imaginar como estará sua vida dali a cinco anos. Será que longe de seus desenhos e dos galpões da fábrica? Ou, ainda deitando-se sucessivamente com homens diferentes? Tais expectativas, receios e inseguranças multiplicam-se comumente em quase todos os jovens, dentro e fora de tela, principalmente quando encontram-se longe de casa. Não à toa, Elias busca fincar os pés em São Paulo, metrópole tão distante de sua família na Paraíba.
Logo na cena de abertura, a poesia contida na descrição de um sonho e a cativante atuação de Macedo nos deixam contemplados – poesia, essa, de um jovem migrante saudoso do mar e do litoral. Ao longo do filme, percebe-se o personagem não apenas como um homem em busca de prazeres físicos, mas também de prazeres psicológicos. Afinal, sem o mínimo de atenção demandada nos momentos de carência, as experiências sexuais de nada valem para a plenitude de nossas vidas.
Em meio a isso, o protagonista é introduzido ao universo de seu colega de trabalho, e drag queen nas horas livres, Wellington (Lucas Andrade). Ambos identificam-se rapidamente e passam a desenvolver um relacionamento íntimo. Uma das cenas mais pontuais dos amigos (?) acontece no galpão da fábrica, onde eles se aventuram por entre tecidos empilhados. Wellington, então, apresenta Elias ao maravilhoso mundo de suas colegas drag queen, como Marcia Pantera (interpretada por ela mesma).
Uma das sequências mais interessantes do filme se dá quando Elias e as drags dirigem motocicletas customizadas. Nesse momento do longa, a bela fotografia exerce a sua mais plena fluorescência. As sequências mais leves e divertidas, por sinal, acontecem sempre na presença de pelo menos uma das drags. Inesquecível o curto trecho de interpretação do hino “Talento”, de Linn da Quebrada (“Vou te confessar/ Que às vezes nem eu me aguento/ Pra ser tão viado assim/ Precisa ter muito mais/ Muito talento”).
Ao mesmo tempo em que o roteiro de Corpo Elétrico sente dificuldade para emplacar e apresentar um clímax – que nunca chega, na verdade –, a sutileza no desenvolvimento do protagonista é aquilo que mais evidencia a passagem de tempo e o andamento do enredo. Assistir ao longa é uma experiência sensorial, porque, ali, o que mais vale é aquela antiga e honesta noção de que o nosso sentimento, como espectador, está acima de nossa compreensão acerca da narração.
Por vezes, a presença de cenas de sexo longas e específicas podem não fazer muito sentido a quem assiste – específicas, sim, e não explícitas, porque, ainda que totalmente explicitadas, tais cenas se caracterizam por uma crueza notável, a partir de gestos habitualmente pouco explorados no cinema e que retratam mais o corpo do que o voyeurismo em si.
Temos, em tela, uma porção de temas importantíssimos – como empoderamento LGBT, homossexualidade sem pudores, vida de proletariado, relacionamento entre colegas de trabalho, relacionamentos líquidos (que são o produto de uma sociedade impulsiva e pouco afetiva)…–, e, mesmo assim, o diretor constrói uma obra cujo objetivo não seja o de levantar quaisquer bandeiras, unicamente a fim de analisar problemas sociais. A resposta de Marcelo Caetano a tudo aquilo que vá na contramão dos temas de seu filme é assumidamente pessoal, tendo nascido do poema “Eu Canto o Corpo Elétrico”, de Walt Whitman. E, portanto, pretende trazer nada mais do que a visão de um indivíduo sensível àquilo que o cerca.
Corpo Elétrico abre espaço para que seu diretor englobe a lista de cineastas brasileiros aclamados nos últimos tempos, como Kleber Mendonça Filho e Anna Muylaert, e cujos trabalhos flertam com questões sociais, identificáveis como representativos de minorias. A partir de agora, esse tipo de arte pode ser reconhecido não apenas como um anseio de seus autores, mas principalmente como algo que vive em todos nós e que não tem mais como não fazer parte do cinema emergente. Precisamos de mais Elias e Wellingtons na cinematografia, assim como precisamos de filtros humanos como o de Marcelo em nossas vidas.
*Texto originalmente publicado em 05/10/17
Ficha técnica
Ano: 2017
Duração: 1h34
Direção: Marcelo Caetano
Elenco: Kelner Macêdo, Lucas Andrade, Welket Bungué, Nash Laila, Ana Flavia Cavalcanti
Distribuidora: Vitrine Filmes
País: Brasil