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Na última quinta (21), estreou Desobediência, o mais novo filme de Sebastián Lelio (Uma Mulher Fantástica). Estrelado por Rachel Weisz, no papel de Ronit – uma fotógrafa que vive em Nova Iorque – e Rachel McAdams, como Esti – personagem casada e fiel ao Judaísmo Ortodoxo –, o longa-metragem retrata o romance entre as amigas de infância.
Quando Ronit se mudou da comunidade inglesa à qual pertencia desde o nascimento, a protagonista também deixou para trás qualquer tipo de relação com Esti, seu primo Dovid (Alessandro Nivola), seu pai (o Rav; título judaico) e todas as demais pessoas que ali viviam.
Anos depois, quando a fotógrafa retorna à cidade após a morte do pai, ela reencontra Dovid, agora um rabino, e se hospeda em sua casa por uma temporada. O que Ronit não contava, no entanto, era que seu primo teria se casado com Esti. Tendo de enfrentar a rejeição de judeus ultraconservadores e hostis (muitos, de sua própria família), a protagonista também precisa lidar com a tensão sexual entre ela e a antiga amiga.
Com o tempo, Esti se revela uma mulher profundamente intensa e apaixonada – não somente por Ronit, mas pela vida. A atuação de ambas as Rachel faz jus a seus trabalhos anteriores, todos de alta qualidade; enquanto que a química entre suas personagens dá um significado poético ao fato de as atrizes terem o mesmo nome. Tanto Weisz quanto McAdams convencem pela cativante emoção passada em tela.
A paixão de Esti por Ronit é de décadas, e a transgressão da segunda é interpretada de forma tão sutil, na pele de Weisz, que se torna totalmente fascinante a quem assiste. Com trilha sonora delicada e pontual, a única canção do filme letrada em inglês pertence à banda pós-punk The Cure. Em Lovesong, o vocalista canta “Whenever I’m alone with you/ You make me feel like I am home again” (“Sempre que estou sozinho com você / Você me faz sentir como se estivesse em casa novamente”, em tradução para o português).
Sozinhas, pela primeira vez desde que Ronit retornara à comunidade, as (e)namoradas finalmente podem se abrir de modo sincero. É quando Lovesong toca no rádio da sala, em uma estação distante da realidade judaico-ortodoxa, trazendo certa leveza, pela primeira vez na história e também aos espectadores.
(Clipe de Lovesong):
(Fonte: The Cure / YouTube)
A fotografia acizentada de Desobediência demonstra o clima pesado e rígido da comunidade conservadora. Lá, homossexuais claramente não são aceitos, as mulheres devem fazer sexo toda a sexta-feira com seus maridos (para cumprir suas supostas obrigações conjugais), seus cabelos não podem ser expostos (tendo gastos financeiros com perucas), e sua independência e decisão sobre ter filhos sequer são discutidas.
Crente da religião e sem opções de sustento, Esti é uma personagem extremamente interessante. Sua paixão de anos por outra mulher não a envergonha, mas prefere, sim, manter uma vida de aparências a abandoná-la. Do lado oposto, Ronit rompera com tudo isso há anos. Mesmo que sua vida amorosa jamais tenha sido a prioridade de seu coração, a personagem escolheu ser livre para poder viver como bem entendesse.
Os enquadramentos, os diálogos, os silêncios…tudo na produção contribui para a criação de uma atmosfera bastante tensa, e nunca sabemos quais serão as reações seguintes de cada personagem. Como exemplo, temos a única cena de sexo entre as protagonistas, na qual, sem trocar uma palavra, as duas pegam um metrô para Londres, caminham por suas ruas, beijam-se num beco, entram em um quarto de hotel e se amam fervorosamente, ali mesmo, no chão ao lado de uma cama luxuosa.
A sintonia entre Ronit e Esti, a cena de sexo – que, de forma alguma, expõe seus corpos; nem mesmo pernas e barrigas –, a urgência de seus beijos e a paixão adolescente que sentem uma pela outra fazem deste um filme absurdamente apaixonante.
Uma reviravolta no final pode despertar certa divisão de gosto do público, mas seu ineditismo é, de fato, interessante. Desobediência não é um filme de entretenimento, mas você pode se encantar com essa bela história de amor – e há poucas coisas melhores do que isso.
Ficha técnica
Ano: 2017
Duração: 1h54
Direção: Sebastián Lelio
Elenco: Rachel McAdams, Rachel Weisz, Alessandro Nivola
Gênero: Drama, Romance
Distribuição: Sony Pictures
País: EUA
Sexo e nudez feminina: como identificar a hiperssexualização nas telas
Com a recente divulgação de campanhas como a Time’s Up, a questão de gênero nunca esteve tão evidente em Hollywood. Mas, por mais que esse – aparentemente pequeno – avanço esteja se tornando efetivo em vários aspectos, não podemos simplesmente assumir que as próximas produções de cinema e televisão tenham um caráter feminista.
Afinal de contas, a indústria cinematográfica mundial se alimenta diretamente do sistema capitalista e, nele, as mulheres nunca serão bonitas, inteligentes e realizadas o suficiente; caso contrário, os ideais de “perfeição” feminina não enriqueceriam tantas empresas de todos os tamanhos. Falando especificamente em sétima arte, uma das abordagens mais comumente usadas em produções, para categorizar as mulheres, consiste na adoção de técnicas de hiperssexualização.
O termo, como o próprio nome diz, faz referência ao modo como o corpo feminino é exposto em diferentes tipos de mídia, a fim de transformá-lo em um objeto passível de excitação sexual – focando principalmente no interesse masculino. A hiperssexualização aparece em livros, quadrinhos, propagandas, filmes, séries de TV e inúmeras outras formas de comunicação mediada. Closes desnecessários nas partes íntimas de atrizes, expressões de prazer sexual em contextos aleatórios, tons de voz, diálogos e enfoque na mulher, durante as cenas de sexo, são alguns dos exemplos de hiperssexualização em obras cinematográficas e televisivas.
A COR MAIS QUENTE E A EXPLORAÇÃO DO CORPO
Quando pensamos em cenas de sexo, nas quais a figura feminina é explorada e objetificada, o longa francês Azul é a Cor Mais Quente (2013), de Abdellatif Kechiche, é um dos que vêm primeiro à cabeça. A produção sobre o romance entre duas jovens venceu a Palma de Ouro de Cannes, no ano de lançamento. No filme, há duas cenas de sexo muito extensas e, sem contar a “primeira vez” das jovens protagonistas – cuja importância narrativa consiste no reconhecimento de Adèle (Adèle Exarchopoulos) da própria sexualidade –, as demais cenas não acrescentam nada à história, ou exploram o relacionamento lésbico sob um viés político ou poético.
Pelo contrário, Adèle e Emma (Léa Seydoux) – duas mulheres muito jovens, brancas e magras – aparecem nuas e totalmente depiladas. Elas gemem alto e constantemente, fazem posições um tanto “glamourosas” para um momento íntimo, e transam de luzes acesas, totalmente disponíveis à excitação do público. Na época de divulgação do filme, Seydoux chegou a admitir que se sentiu como uma prostituta no set, ao ter de fingir orgasmos durante seis horas seguidas. O grande problema nisso, além do sentimento da atriz, é que as cenas de alguns minutos não retratam o sexo com a sensibilidade necessária para representar duas jovens apaixonadas.
Em resposta, Kechiche chamou a atriz de “neurótica” e afirmou ser perigoso dizer que seu olhar foi machista, quando ele apenas tinha a intenção de banalizar o amor homossexual. “O problema é que algumas feministas acham que homens não têm o direito de falar sobre o amor de duas mulheres”, completou o diretor.
É claro que, para tratar a questão de maneira realista, o elemento “tesão” é muito necessário entre as personagens – e isso há, de fato. Mas,
o filtro da hiperssexualização impede o espectador de enxergar as atrizes como seres comuns
Crítica: Corpo Elétrico
Em meio ao atual caos político nacional, obras dramáticas que se proponham a analisar a nossa sociedade de maneira simples ou subjetiva podem ser mal vistas ou, até mesmo, subjugadas. E, é por isso que, Corpo Elétrico, o novo filme do diretor Marcelo Caetano que abriu o 12º Festival de Cinema Latino-Americano – e que participou de festivais como o de Roterdã (Holanda) e o de Guadalajara (México) –, chega a ser tão especial dentro da pós-contemporaneidade brasileira. O longa-metragem imprime uma sensibilidade característica da direção, oferecendo uma experiência sensorial a partir da vivência de indivíduos comuns que, são, ao mesmo tempo, cheios de peculiaridade.
Elias (Kelner Macêdo) é um dos corpos eletrizados pelo vai e vem de sua vida em uma fábrica de confecção de roupas, também como pelo frenesi de sua liberdade sexual. Ele é jovem, gay, nordestino, representante direto do proletariado e mal consegue imaginar como estará sua vida dali a cinco anos. Será que longe de seus desenhos e dos galpões da fábrica? Ou, ainda deitando-se sucessivamente com homens diferentes? Tais expectativas, receios e inseguranças multiplicam-se comumente em quase todos os jovens, dentro e fora de tela, principalmente quando encontram-se longe de casa. Não à toa, Elias busca fincar os pés em São Paulo, metrópole tão distante de sua família na Paraíba.
Logo na cena de abertura, a poesia contida na descrição de um sonho e a cativante atuação de Macedo nos deixam contemplados – poesia, essa, de um jovem migrante saudoso do mar e do litoral. Ao longo do filme, percebe-se o personagem não apenas como um homem em busca de prazeres físicos, mas também de prazeres psicológicos. Afinal, sem o mínimo de atenção demandada nos momentos de carência, as experiências sexuais de nada valem para a plenitude de nossas vidas.
Em meio a isso, o protagonista é introduzido ao universo de seu colega de trabalho, e drag queen nas horas livres, Wellington (Lucas Andrade). Ambos identificam-se rapidamente e passam a desenvolver um relacionamento íntimo. Uma das cenas mais pontuais dos amigos (?) acontece no galpão da fábrica, onde eles se aventuram por entre tecidos empilhados. Wellington, então, apresenta Elias ao maravilhoso mundo de suas colegas drag queen, como Marcia Pantera (interpretada por ela mesma).
Uma das sequências mais interessantes do filme se dá quando Elias e as drags dirigem motocicletas customizadas. Nesse momento do longa, a bela fotografia exerce a sua mais plena fluorescência. As sequências mais leves e divertidas, por sinal, acontecem sempre na presença de pelo menos uma das drags. Inesquecível o curto trecho de interpretação do hino “Talento”, de Linn da Quebrada (“Vou te confessar/ Que às vezes nem eu me aguento/ Pra ser tão viado assim/ Precisa ter muito mais/ Muito talento”).
Ao mesmo tempo em que o roteiro de Corpo Elétrico sente dificuldade para emplacar e apresentar um clímax – que nunca chega, na verdade –, a sutileza no desenvolvimento do protagonista é aquilo que mais evidencia a passagem de tempo e o andamento do enredo. Assistir ao longa é uma experiência sensorial, porque, ali, o que mais vale é aquela antiga e honesta noção de que o nosso sentimento, como espectador, está acima de nossa compreensão acerca da narração.
Por vezes, a presença de cenas de sexo longas e específicas podem não fazer muito sentido a quem assiste – específicas, sim, e não explícitas, porque, ainda que totalmente explicitadas, tais cenas se caracterizam por uma crueza notável, a partir de gestos habitualmente pouco explorados no cinema e que retratam mais o corpo do que o voyeurismo em si.
Temos, em tela, uma porção de temas importantíssimos – como empoderamento LGBT, homossexualidade sem pudores, vida de proletariado, relacionamento entre colegas de trabalho, relacionamentos líquidos (que são o produto de uma sociedade impulsiva e pouco afetiva)…–, e, mesmo assim, o diretor constrói uma obra cujo objetivo não seja o de levantar quaisquer bandeiras, unicamente a fim de analisar problemas sociais. A resposta de Marcelo Caetano a tudo aquilo que vá na contramão dos temas de seu filme é assumidamente pessoal, tendo nascido do poema “Eu Canto o Corpo Elétrico”, de Walt Whitman. E, portanto, pretende trazer nada mais do que a visão de um indivíduo sensível àquilo que o cerca.
Corpo Elétrico abre espaço para que seu diretor englobe a lista de cineastas brasileiros aclamados nos últimos tempos, como Kleber Mendonça Filho e Anna Muylaert, e cujos trabalhos flertam com questões sociais, identificáveis como representativos de minorias. A partir de agora, esse tipo de arte pode ser reconhecido não apenas como um anseio de seus autores, mas principalmente como algo que vive em todos nós e que não tem mais como não fazer parte do cinema emergente. Precisamos de mais Elias e Wellingtons na cinematografia, assim como precisamos de filtros humanos como o de Marcelo em nossas vidas.
*Texto originalmente publicado em 05/10/17
Ficha técnica
Ano: 2017
Duração: 1h34
Direção: Marcelo Caetano
Elenco: Kelner Macêdo, Lucas Andrade, Welket Bungué, Nash Laila, Ana Flavia Cavalcanti
Distribuidora: Vitrine Filmes
País: Brasil