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América Latina para Imbecis busca ser um antídoto contra o nosso complexo de vira-lata
Em junho deste ano, a humorista Hannah Gadsby surpreendeu os assinantes da Netflix com Nanette, sua apresentação impecável e emocionante sobre o que é ser uma mulher lésbica num mundo misógino. O show de Gadsby serviu, entre tantas outras coisas, para mostrar ao público do humor que é possível tratar de assuntos sérios e delicados a partir de uma abordagem crítica, responsável e ácida ao mesmo tempo. Nesse mesmo perfil de show de humor se encaixa o lançamento =&0=&.
Recém disponibilizado na Netflix, o stand-up América Latina para Imbecis, escrito e performado pelo ator, comediante e roteirista John Leguizamo, busca resgatar milhares de anos de história latino-americana invisibilizada nos livros escolares e no imaginário popular das Américas – e do mundo.
Com um cenário repleto de livros e uma lousa, Leguizamo aproveita sua origem colombiana para realizar uma apresentação que mistura relatos de suas vivências enquanto homem latino-americano que mora nos EUA com referências históricas de bibliografias que ele considera essenciais para o resgate e a manutenção de nossa ancestralidade latina.
Seu ponto de partida é o filho que sofre bullying no colégio. Em sua narrativa, o artista conta que o garoto sofre pequenas agressões cotidianas por ser latino e que, como todos nós, não possui referências suficientes para fazer um trabalho escolar sobre heróis nacionais sem escolher um personagem branco.
Usando a falta de conhecimento – e de apreço – do filho sobre a história e a cultura da América Latina como fio condutor de seu espetáculo, Leguizamo nos conta 3 mil anos de história latina.
Ele fala sobre como os impérios Maias, Astecas, Incas (entre tantos outros), civilizações tecnológica e socialmente avançadas, e culturalmente ricas e complexas, foram atacadas e exterminadas pela ganância dos brancos europeus.
Com riqueza de detalhes, o artista explica que as únicas vantagens dos europeus durante a colonização eram seus germes, as transmissões de doenças. Foi assim que os colonizadores brancos conseguiram invadir as terras da América, exterminar civilizações impressionantes, estuprar as mulheres nativas, destruir conhecimento e cultura e derreter obras de arte para saquear o ouro. Ao que tudo indica, a história do mundo é mesmo sempre contada por homens privilegiados e medíocres.
Em meio ao panorama histórico, América Latina para Imbecis chega aos dias de hoje com duras críticas a Donald Trump, que assim como os colonizadores, acha de bom tom enjaular seres humanos. Além disso, alguns questionamentos fundamentais são colocados: por que dizemos folclore em vez de cultura? por que dialeto em vez de idioma? artesanato no lugar de obras de arte? Por que aceitamos ser diminuídos em todas as esferas de nossas vidas?
Depois, em um dos momentos mais tocantes da apresentação humorística, Leguizamo diz que “a vida latina não vale muito nos EUA”. E nem no resto do mundo, sejamos honestos. Já diria a cantora Ana Tijoux em sua música Somos Sur: somos todos os oprimidos, calados e sem voz. Somos o sul.
Apesar de relacionar com maestria a nossa ausência da memória com nossa problemática autoestima, em alguns momentos o espetáculo deixa a desejar em relação a representatividade. É de se imaginar que as mulheres nativas tenham sofrido de outras maneiras (mais graves) com a colonização, e a performance não dá conta de uma abordagem que inclua questões de gênero com autoridade. Se homens latino-americanos foram e são invisibilizados, as mulheres e a comunidade LGBTQI+ são muito mais.
De qualquer forma, América Latina para Imbecis é um exercício positivo de memória que usa o humor para alcançar a afetividade das pessoas, além de ser um chamado para que os povos latinos, com suas semelhanças e diferenças, se unam, reconstruam sua autoestima e reajam à violência do racismo e da xenofobia para seguir em frente, rumo a reconstrução do orgulho de ser o sul.
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Crítica: Duas de Mim
Não é de hoje que os filmes comerciais de comédia nacional têm fama de carregar multidões aos cinemas, mas isso começou a variar de acordo com o contexto sociocultural do momento. Em 2015, Loucas Pra Casar foi o filme nacional de maior bilheteria. Já em 2016, o polêmico e religioso Os Dez Mandamentos ficou em primeiro lugar. Agora, em 2017, Polícia Federal – A Lei é Para Todos fez grandes números, vendendo mais de 400 mil ingressos no primeiro fim de semana.
Tais números, que demonstram a preferência do público geral por filmes nacionais com conteúdos problemáticos – como piadas preconceituosas, estereótipos machistas e temáticas das religiões dominantes – são um reflexo da manifestação do conservadorismo em nosso país, que não é recente, mas que avança.
Ainda que filmes religiosos e politicamente conservadores tenham fincado seu lugar no cinema nacional, as comédias são sempre lançadas com alguma frequência e apresentam números bastante expressivos. Duas de Mim é um desses casos. Sua estreia no dia 28 de setembro rendeu mais de 80 mil ingressos vendidos no primeiro fim de semana.
Com direção de Cininha de Paula – experiente em produções televisivas da Rede Globo, como Escolinha do Professor Raimundo, Sai de Baixo e Pé na Cova – seu novo filme se propõe a retratar, de forma divertida, a vida de Suryellen (Thalita Carauta), uma mulher que vende marmitas pela manhã, trabalha lavando louça para um restaurante à noite e mantém sozinha o filho, a mãe (Maria Gladys) e a irmã mais nova (Letícia Lima), representando, assim, a dura rotina de muitas mulheres brasileiras.
Até certo ponto, tratar dos problemas do dia a dia e dos sonhos que uma mulher não consegue realizar – porque a sociedade não permite – de forma engraçada, parece ser uma proposta com muito potencial. Até mesmo o humor contido no fato de o cantor Latino interpretar um cover de si próprio chega a funcionar. No entanto, quando a protagonista come um “bolo dos desejos” e pede para se dividir em duas, as coisas começam a desandar. Isso acontece não apenas na qualidade do filme em si, mas atrapalha também a mensagem que ele poderia transmitir aos espectadores.
Quando a outra Suryellen surge, idêntica fisicamente, mas com uma personalidade completamente diferente da original, poderia ter surgido também uma demonstração de solidariedade da duplicata para com aquela mulher que tinha uma vida tão atribulada. Inicialmente, isso até acontece, mas a clone da protagonista logo se transforma no clichê da vilã que precisa ser derrotada, e qualquer chance de falar sobre sororidade – o apoio mútuo entre mulheres –, em uma comédia que conversa com milhares de pessoas, vai direto para o buraco.
A partir daí, diversos clichês de baixa qualidade são simplesmente jogados no filme; como a vilã louca que quer tomar o lugar de outra mulher, o machismo textual reproduzido em várias cenas, a mulher rica que não trabalha e só quer glamour e as piadas inaceitáveis com anões, em pleno 2017. Tudo isso para terminar com o Latino cantando algo chamado por ele de “reggaeton abrasileirado”, mas que de reggaeton não tem nada.
Duas de Mim poderia ser uma aposta interessante na mudança de rumo das comédias nacionais escrachadas. Em determinados momentos, algumas mensagens importantes até conseguem ser lançadas, mas, infelizmente, não é um filme que entrega o potencial que aparentava ter. Trata-se de mais uma comédia que tenta flertar com pautas que estão em alta no momento, mas que por vezes se perde no pior do humor conservador.
*Texto originalmente publicado em 12/10/2017
**Dados sobre bilheterias foram retirados do site AdoroCinema
Ficha técnica
Ano: 2017
Duração: 1h22
Direção: Cininha de Paula
Elenco: Thalita Carauta, Latino, Letícia Lima, Márcio Garcia
Distribuidora: Paris Filmes
País: Brasil