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Estreia: Uma análise literária de ‘Quase Memória’, novo filme de Ruy Guerra
Quando as lembranças se esvaem de uma mente vencida pelo tempo, a solução é encontrar dentro si próprio a memória uma vez perdida. Mas, e se, por travessura do Tempo (aquele que lhe tapeou e deixou sem ninguém), fosse possível um encontro com seu antigo “eu”? Dois corpos, um único ser. Ambos desconhecidos – o primeiro, muito jovem, e o segundo, esquecido de si mesmo. Quase Memória, o novo filme de Ruy Guerra que estreia nesta quinta (19), retrata a falta de linearidade temporal e as recordações de uma vida inteira.
São Paulo, 6 de abril de 2018. Os veteranos Ruy Guerra, diretor do longa-metragem, e Tony Ramos, a estrela do filme, reúnem-se no Caixa Belas Artes para uma coletiva de imprensa. Senta-se, junto a eles, a produtora de Quase Memória (e filha de Ruy), Janaína Diniz Guerra, para debaterem e responderem algumas perguntas sobre a produção.
Em pleno dia marcante para a política brasileira, Ruy e Tony são pegos de surpresa ao serem questionados sobre suas posições diante de tanto caos. Com expressão séria e comedida, Tony Ramos afirma já ter visto “vários filmes do Brasil”. Depois, Ruy Guerra diz conter o choro. Enquanto um filme sobre a importância das lembranças é discutido dentro da sala de cinema, muitos brasileiros tomam consciência do assombramento histórico que se forma do lado de fora.
Nem a imersão cinematográfica é capaz de nos blindar da avalanche política que assola o país – e nunca foi, na verdade. Quase Memória, produzido em 2015 e baseado na obra de Carlos Heitor Cony, já englobava, à época de produção, algumas narrativas políticas. O protagonista Carlos (interpretado em sua fase jovem por Charles Fricks e, na mais velha, pelo próprio Ramos) conta a história de seus já falecidos pais, Ernesto (João Miguel) e Maria (Mariana Ximenes), após receber um pacote do primeiro.
Dentre politicagens e discussões atemporais, a história de Carlos se tece de maneira essencialmente poética. Através de uma estética steampunk abrasileirada, um possível corte de gastos do diretor sequer passa pela cabeça do espectador. Guerra conta que trabalhou em quatro adaptações antes fechar o orçamento do filme; e, como o “Rio antigo não cabia”, o diretor teve de tomar outras decisões. “Fui obrigado a escolher as histórias mais passíveis de serem produzidas com pouco dinheiro”, conta ele.
Aparentemente, o caminho trilhado pela produção foi muito bem sucedido. A atmosfera lírica e subjetiva, graças à narração de Carlos (personagem), dá a sensação de estarmos presenciando uma grande fantasia. Assim como na obra mais célebre de Machado Assis (Dom Casmurro), a perspectiva restritiva do protagonista Bentinho deixa margem a várias interpretações por parte do leitor.
Guerra afirma ter tido pouco contato com Cony em vida. Sua filha, Janaína, encontrou um exemplar de Quase Memória em uma livraria portuguesa. Quando, após 25 anos de espera, a adaptação audiovisual finalmente foi encaminhada, Cony foi condescendente com o roteiro escrito. “O autor foi muito respeitoso ao não interferir no processo criativo de escrita do roteiro”, conta Janaína (como produtora). Infelizmente, o escritor, que faleceu no início deste ano, não chegou a ver o filme finalizado. “A espera foi longa demais pra que ele tivesse esse retorno”, reflete a produtora.
Enquanto Guerra – o detentor do melhor plano do cinema (trecho ininterrupto), segundo Ramos sobre a opinião do diretor de televisão Daniel Filho – lança seu filme e se indigna com o momento político, a estrela de Quase Memória conta sobre o que lhe vem à cabeça diante do longa-metragem. “A minha reflexão sobre o filme é ‘dê tempo a você'”, responde Ramos a um dos jornalistas da coletiva.
É natural que, após assistirmos ao filme, o medo da velhice e da senilidade nos apareça. “Que pergunta eu farei àquele passado?”, pergunta o ator de maneira retórica. E, então, somos levados a nos questionar também: que pergunta(s) eu faria ao meu antigo eu? Que conselho(s) eu me daria? Por ora, fiquemos apenas na imaginação. E então, contemplemos a linearidade de uma história preterida pela poesia cinematográfica.
Ficha técnica
Ano: 2018
Duração: 1h35
Direção: Ruy Guerra
Elenco: Tony Ramos, João Miguel, Charles Fricks, Mariana Ximenes
Gênero: Comédia, Drama
Distribuidora: Pandora Filmes
País: Brasil