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Curtas-metragens para assistir no Porta Curtas (pt. II)
Mesmo com Tanta Agonia
O Quebra Cabeça de Tarik
Manual para incentivar o cinema nacional
Era noite de domingo (2/9) quando o Museu Nacional, localizado na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro, pegou fogo. Um incêndio que transformou em cinzas milhões de itens do acervo. Registros dos mais diversos sobre nossa história e ancestralidade. São prejuízos culturais e científicos imensuráveis, irreparáveis e desoladores.
O trágico evento levantou inúmeras discussões nas redes sociais, principalmente em relação ao evidente projeto de desmanche da cultura, da pesquisa e da educação que ganha força no Brasil pós-golpe. Além disso – e infelizmente -, as imagens da destruição e a dor da perda nos convidaram a refletir, enquanto sociedade, sobre o valor que damos à arte e ao conhecimento.
Nesse sentido, podemos pensar sobre como nossas ações e escolhas individuais podem interferir na forma como tratamos a cultura enquanto nação. Tomemos o cinema como exemplo. Quando falamos em cinema nacional, o conhecimento da maioria das pessoas se limita às grandes comédias. Já tratamos desse assunto algumas vezes por aqui, mas nunca é demais ressaltar que, com algumas atitudes específicas, é possível colaborar com a criação de campo fértil para um cinema nacional diverso em estética, narrativa, protagonismo, regionalidade, gênero, cor e etc.
Claro que nenhuma ação individual exime o Estado de suas responsabilidades (e elas são muitas e urgentes). Também não podemos exigir ou esperar que todas as pessoas tenham condições de pensar em museus, cinema e ciência quando sequer conseguem alimentar suas famílias. Vivemos tempos difíceis em todos os sentidos.
No entanto, é de extrema importância que, se possível, façamos algo. Por mais simples que seja. Então, com a intenção de ajudar nossos leitores a pensarem e agirem em prol da diversidade no cinema nacional e a partir de pequenas ações pessoais, montamos essa espécie de manual com dicas. Acompanhe:
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Sabemos que ir ao cinema é uma atividade cara e a maior parte das sessões de filmes nacionais mais independentes ficam restritas aos cinemas centrais. Por isso, procure gastar seu dinheiro pagando pelo ingresso de obras (de ficção ou documentário) que precisam de maior apoio do público.
Filmes comerciais conseguem fazer carreira investindo em campanhas de marketing e divulgação, geralmente contando com o respaldo da televisão e seus artistas. Priorize, então, produções que não possuem dinheiro para autopromoção, filmes de pequeno e médio orçamento. Além disso, dê preferência para filmes com temáticas indígenas, filmes dirigidos por mulheres negras, homens negros e mulheres brancas.
Maior diversidade em setores como direção e roteiro proporcionam, por consequência, diversidade no tipo de registro e abordagens de assuntos que teremos como memória para o futuro. Leia mais sobre isso aqui.
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Como dito anteriormente, filmes médios e independentes são distribuídos em poucas salas. Nesse caso, saiba que encontrar sessões é uma tarefa que demanda um pouco de dedicação (e disponibilidade).
Antes de mais nada, esteja disposto(a) a se deslocar até algum cinema mais distante – se isso for possível, claro. Às vezes a preguiça é cruel, mas ninguém disse que se posicionar politicamente em benefício do cinema nacional seria fácil, não é mesmo?
Procure pela programação do filme em questão nas páginas das distribuidoras. A Vitrine Filmes é a maior distribuidora brasileira de filmes nacionais e sempre divulga a lista de cidades onde seus filmes serão exibidos em sua página do Facebook. Curta e fique de olho.
Acompanhe também os lançamentos da Sessão Vitrine Petrobras, da Vitrine Filmes. São sessões que exibem filmes nacionais mais independentes, de diferentes estados, contemporâneos e dirigidos por novos e promissores nomes do cinema brasileiro. Os ingressos dos filmes da Sessão Vitrine Petrobras custam 12,00 (inteira). O projeto é uma ótima oportunidade para conhecer o que de mais atual vem sendo produzido no país.
Algumas salas de cinema promovem exibições de filmes nacionais com ingressos mais baratos. É comum que essas sessões aconteçam em centros culturais. Busque se informar sobre a programação de cinema desse tipo de espaço na sua cidade.
Também procure consultar veículos de mídia alternativos. Descentralize a informação e amplie o horizonte das possibilidades. Aqui mesmo, no “Francamente,querida!”, você encontra críticas sobre os lançamentos – e mais indicações de sites na lateral de nossa página. Sempre priorizamos produções independentes, nacionais, latino-americanas e/ou dirigidas por mulheres.
=&2=& tente assistir ao filme escolhido na semana em que ele estreou. É fundamental para mantê-lo por mais tempo em cartaz e garantir que mais pessoas consigam vê-lo. Afinal, cinema depende muito de pensarmos o coletivo.
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Em primeiro lugar: não procure por cópias pirateadas na internet. Cinema nacional independente é, muitas vezes, feito na cara e na coragem. Com pouquíssimo apoio de políticas públicas e menos ainda de iniciativas privadas. Portanto, cada centavo que entra para este tipo de produção faz muita diferença.
Sendo assim, se você não conseguiu assistir ao filme no cinema, aguarde um pouco. Em alguns meses (ou até menos) ele estará disponível para aluguel e compra nas plataformas de video on demand (VOD). Invista nisso. Um aluguel de filme nacional não costuma custar mais de 10,00 reais e esse dinheiro também é uma forma importante de apoiar a obra, de fazê-la durar para além das salas de exibição e permanecer enquanto bem cultural.
Para facilitar essa missão de garimpo, conheça o site Filmmelier, uma iniciativa que te ajuda a saber o que está sendo lançado nas plataformas on demand e em que plataformas você encontra cada filme.
Plataformas nas quais você pode procurar por filmes nacionais para assistir pagando pelo aluguel, compra ou assinatura: Apple TV, Now, Vivo Play, Google Play, Netflix e YouTube.
Além disso, alguns canais pagos, como o Canal Brasil e o Canal Curta! costumam ter uma grade de programação que prioriza a exibição de produções nacionais. Fique de olho nas programações.
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Chico, uma distopia realista?
O ano é 2029. Durante os 13 anos seguintes ao golpe que provocou o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o racismo foi institucionalizado no Brasil. Pressupõe-se que, mais cedo ou mais tarde, crianças pobres, negras e marginalizadas virão a cometer algum crime. Por isso, assim que nascem elas são marcadas com tornozeleiras de rastreamento que as acompanharão por toda a vida. Chico é uma dessas crianças. Negro, pobre, morador de favela.
Tentei: o ciclo da violência doméstica em 14 minutos
Atenção: este texto contém spoilers. Antes de seguir com a leitura, assista ao curta aqui.
Aos 34 anos e tomada pela coragem que reuniu ao longo de muito tempo, Glória (Patricia Saravy) decide, numa manhã que tinha tudo para ser como qualquer outra, se livrar de um ciclo que a oprime e fragiliza há mais de uma década e recuperar o seu direito de ser, de existir com dignidade.
Essa seria a sinopse otimista do curta =&0=&, da diretora Laís Melo, indicado à categoria de Melhor Curta-metragem de Ficção do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro 2018. A obra, no entanto, segue o caminho tortuoso da realidade cotidiana de milhões de mulheres brasileiras: a realidade das dificuldades de denunciar violência doméstica no país.
Antes de mais nada, é preciso entender o que é violência doméstica. Conforme definido pela Lei Maria da Penha, “violência doméstica e familiar contra a mulher é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial’’.
O Dossiê Violência Contra as Mulheres, da Agência Patrícia Galvão, conta com vários dados sobre violência doméstica no Brasil. Por exemplo, estima-se que cinco mulheres são espancadas a cada 2 minutos; o parceiro (marido, namorado ou ex) é o responsável por mais de 80% dos casos reportados, segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado (FPA/Sesc, 2010)
Ainda de acordo com o documento: “Apesar dos dados alarmantes, muitas vezes, essa gravidade não é devidamente reconhecida, graças a mecanismos históricos e culturais que geram e mantêm desigualdades entre homens e mulheres e alimentam um pacto de silêncio e conivência com estes crimes.
Na pesquisa Tolerância social à violência contra as mulheres (Ipea, 2014), 63% dos entrevistados concordam, total ou parcialmente, que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família”. E 89% concordam que “a roupa suja deve ser lavada em casa”, enquanto que 82% consideram que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.”
Então, sob o recorte certeiro de Laís Melo, também roteirista, Tentei acompanha a árdua trajetória da mulher que quer denunciar o marido. O filme vai desde o momento em que ela acorda, decidida a romper com sua atual situação, até o momento em que, desesperançosa e desmotivada por estruturas despreparadas, retorna à sua casa para, sem opção, reiniciar o ciclo.
A caminhada de Glória é solitária. Fica evidente que não há ninguém próximo para apoiá-la. Depois, quando chega à delegacia, a personagem é tratada como um número. Como somente mais uma ficha do escrivão homem. Para ela, entretanto, esse poderia ser o dia mais importante de sua vida, mas acaba frustrado pelos mecanismos institucionalizados que mais funcionam como outro tipo de violência do que como ajuda.
Laís Melo usa da ficção para representar todas as sutis (ou nada sutis) violências que convivem com mulheres vítimas de agressores protegidos pela impunidade. Mulheres que saem de casa dispostas a mudar o rumo de suas vidas, mas que, ao se depararem com delegacias despreparadas, funcionários nada empáticos e toda uma cultura misógina que diz que a culpa é sempre feminina, voltam para casa e esperam resignadas pela próxima agressão.
Tentei é um filme curto e brutal, mas também é, acima de tudo, uma denúncia indispensável que só faz somar como obra nacional disposta a tratar de violência de gênero – principalmente por ter uma equipe formada por mulheres e por tratar da questão exclusivamente sob a ótica da protagonista mulher.
Como ponto alto, a atuação contida e silenciosa de Patrícia Saravy representa a aflição de mulheres que são mais do que estatísticas, mesmo que a engrenagem que segue acobertando machismo e violência tente ignorá-las. Afinal, Glória estava viva para tentar, mas o que acontece quando uma denúncia mal sucedida termina em feminicídio? Quantas vidas de mulheres o Brasil negligencia todos os dias?
*Leia o Dossiê Violência Contra as Mulheres completo neste link.
Leia também: “
A Passagem do Cometa: o aborto no cinema fantástico de Juliana Rojas
De Tanto Olhar o Céu Gastei Meus Olhos
Indicado na categoria Melhor Curta de Ficção do Grande Prêmio de Cinema Brasileiro 2018, =&0=& trata da ausência paterna na vida dos irmãos Luana (Maria Eny) e Wagner (Edilson Silva).
Após anos de abandono, os dois, agora adultos, recebem uma carta do pai que se diz interessado em uma reaproximação. Wagner acredita que o pai possa ter mudado. Luana se recusa a restabelecer qualquer tipo de contato.
O curta dialoga com a lamentável realidade de milhares de crianças brasileiras que crescem sem a presença do pai, dependendo exclusivamente do apoio materno. No final de junho, ainda em clima de Copa do Mundo, o El País Brasil publicou uma reportagem que chamava a atenção para o fato de que seis dos 11 titulares da seleção cresceram sem o suporte do pai biológico.
De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgados pela matéria, 40% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres, sendo que aproximadamente 12 milhões delas não têm cônjuges para ajudar na criação dos filhos.
Em
De Tanto Olhar o Céu Gastei Meus Olhos
Era o Hotel Cambridge e o (não) pertencimento
Era madrugada do feriado de 1º de maio quando o Edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, desabou após um incêndio. O lugar estava ocupado por dezenas de famílias do movimento sem-teto que, desabrigadas, passaram a acampar em frente ao prédio, na praça do Largo do Paissandu, como forma de pressionar a prefeitura por moradia.
Durante semanas, centenas de pessoas ficaram acampadas aguardando alguma atitude do poder público – entre elas idosos, gestantes e crianças. Nesse meio tempo, uma mulher chegou a perder seu bebê depois de entrar em trabalho de parto ali, no meio do acampamento, sem qualquer estrutura e sem atendimento do resgate.
No início de julho (dois meses após o incêndio), 60 barracas ainda ocupavam a praça. De acordo com matéria do jornal O Globo, o governo do estado de São Paulo chegou a oferecer auxílio-aluguel para as famílias desabrigadas, mas, segundo os moradores do edifício que desabou, o valor é insuficiente para alugar qualquer lugar na região e o processo burocrático exige documentos que muitos perderam no incêndio.
Esse trágico episódio trouxe de volta aos holofotes da esfera pública a questão da luta por moradia na cidade de São Paulo e, por consequência, evidenciou a necessidade de filmes como o Era o Hotel Cambridge, da diretora Eliane Caffé – recém exibido na primeira edição do Festival Internacional de Mulheres no Cinema.
O edifício Cambrigde foi construído na década de 50 para ser hotel de luxo em São Paulo e faliu no início dos anos 2000. Entre dívidas de IPTU e batalhas jurídicas com os proprietários, o prédio foi ocupado, transformado em moradia popular e, recentemente, serviu de cenário para o longa de Caffé.
Em Era o Hotel Cambridge, a diretora coloca os próprios moradores para interpretarem versões deles mesmos e serem, de alguma maneira, protagonistas de suas histórias e de sua imagem. Numa linha tênue entre ficção e documentário, eles retratam o cotidiano de uma ocupação, a importância da luta por moradia, como se dão as dinâmicas, os conflitos e, principalmente, como convivem brasileiros e refugiados.
A situação de brasileiros que têm seu direito básico à moradia negado por injustiças sociais já é, por si só, cruel. Essas pessoas são naturalmente marginalizadas, invisibilizadas e jogadas à própria sorte. Por isso, ao acrescentar a questão do refúgio, a diretora traz elementos extras que dizem respeito também à diferença de idioma, de cultura, a xenofobia que existe mesmo no meio das lutas sociais e a carga política que cada indivíduo carrega em si.
Eliane Caffé consegue equilibrar perfeitamente, em sua abordagem ficcionalizada, duas facetas do ex-Hotel Cambridge. Na primeira delas, o edifício é tratado como componente fundamental da narrativa sobre militância política através da forte figura da coordenadora da ocupação e líder comunitária Carmen Silva. Em uma outra camada, ele é usado também como pano de fundo para tratar das trajetórias de um refugiado colombiano, um palestino e um congolês. Trajetórias que parecem individuais e singulares, mas que dão tom ao coletivo.
Numa das passagens mais duras do filme, um dos personagens do Cambridge afirma que no prédio vivem refugiados de outros países, sim, mas também os brasileiros que são refugiados em seu próprio país. Por isso, ali seriam todos iguais, todos excluídos. Essas palavras contribuem diretamente para a noção de pluralidade organizada que permeia toda a obra, mas também revelam a dificuldade da convivência.
Apoiados pela direção impecável de Eliane Caffé e pelos grandes atores José Dumont e Suely Franco, os moradores interpretam quem são, o que suas vidas têm a dizer sobre o país, sobre política externa e interna e sobre comunidade, ao mesmo tempo em que questionam -com pertinência – a posição do Brasil diante dos refugiados. Eles são recebidos, mas e depois? como sobrevivem? como se inserem?
O sistema não garante cidadania e existência digna para incontáveis brasileiros e estrangeiros. E nós, enquanto sociedade, não conhecemos a trajetória do outro. Desconhecemos as guerras dos que vêm de fora em busca de refúgio e ignoramos nossas próprias batalhas.
Daí a importância de um filme como Era o Hotel Cambridge. Um registro de resistência que desmistifica os preconceitos que rodeiam moradores de ocupações, confere rosto e contexto àqueles que chegam ao Brasil para tentar uma nova vida, expõe tensões sociais, violência policial e estatal, explora a força do coletivo a partir de uma protagonista mulher e, acima de tudo, fala sobre (não) pertencimento.
*O filme está disponível para aluguel no iTunes e Google Play
**Como complemento ao filme de Eliane Caffé fica a indicação do curta Ocupação Hotel Cambridge, documentário de Andrea Mendonça que retrata funcionamento do movimento de moradia sem teto do Centro da cidade de São Paulo, o Frente de Luta Por Moradia (FLM), e se preocupa em registrar todo o trabalho, responsabilidade e organização do movimento.
Trailer de Era o Hotel Cambridge:
(Fonte: Vitrine Filmes / YouTube)
Para ler mais sobre a luta por moradia e a realidade das ocupações:
Ocupação não é bagunça: histórias, resistência e disputa pela cidade na Mauá
A Passagem do Cometa: o aborto no cinema fantástico de Juliana Rojas
Três curtas-metragens nacionais para assistir no Porta Curtas
Um curta-metragem pode servir de porta de entrada para muitos diretores no difícil mundo do cinema. Através dele, é possível treinarmos identidades narrativa e estética, com um orçamento muito menor do que um grande longa exigiria. Mas, isso não significa que curtas sejam “treinamentos” de qualidade duvidosa. Apesar da menor duração, eles podem ser filmes tão bons quanto os longas, e até melhores do que muito filme de duas horas que existe por aí.