O último capítulo de Deus Salve o Rei, que vai ao ar hoje à noite, coloca fim a um ambicioso projeto da Rede Globo. Inicialmente taxada de “Guerra dos Tronos tupiniquim”, a trama do autor Daniel Adjafre chamou atenção por trazer certo ar de seriedade à faixa das 19 horas, comumente destinada às comédias.
Deus Salve o Rei estreou sob muita expectativa. A princípio lhe cabia a missão de se esquivar das inevitáveis comparações com séries de TV sem sucumbir (totalmente) aos atraentes e fáceis clichês das telenovelas. Por outro lado, precisava agradar justamente a esse público das novelas e, de bônus, ainda chegou a ser concorrente de Belaventura – novela medieval da RecordTV, emissora que conta com uma audiência nichada fiel.
O projeto começou ambicioso por diversos motivos. O primeiro deles, sem dúvidas, foi a mudança do gênero do horário, da comédia para o drama. Depois, o elenco de peso, que reuniu grandes nomes da nova geração de atores globais. Entre eles: Marina Ruy Barbosa, Bruna Marquezine, Johnny Massaro, Rômulo Estrela e Tatá Werneck. Além disso, Adjafre ousou ao criar personagens pouco convencionais e ao buscar uma estética nada usual em folhetins.
Os enquadramentos, as luzes, fotografia, cenários, figurinos e efeitos especiais foram essenciais para compor a beleza visual de Deus Salve Rei. Aliás, a qualidade dos efeitos foi realmente satisfatória. Nem sempre impecável, mas bastante satisfatória.
A princípio, entretanto, esses recursos visuais ficaram subutilizados numa trama previsível, cujo desenvolvimento se dava a partir de conflitos de relacionamento que se encaixariam perfeitamente em qualquer época, em qualquer novela. Nem temas como a crise hídrica pareciam o bastante para dar a largada em “alguma coisa a mais” e envolver o público.
Entre oscilações de audiência, saída e morte de personagens, reviravoltas e a entrada do autor Ricardo Linhares, a telenovela medieval patinou entre acertos e erros. Errou principalmente ao, no bom e velho português, atirar para todos os lados. Salpicaram na trama todos os elementos medievais que habitam o imaginário popular, misturados, claro, com os tradicionais clichês de novelas – como a rivalidade entre mulheres.
No início, a obra também não conseguia ser ousada o suficiente para investir na política entre os reinos, para ir além da superficialidade do contexto no qual quis se inserir, deixando esse tipo de conflito para depois, com a chegada da peste e o começo das batalhas entre os reinos de Artena, Montemor e Lastrilha.
Contudo, e apesar da colcha de retalhos de enredos que se formou, Deus Salve o Rei teve seus ótimos acertos. A começar pelos personagens. Vários foram jogados de um lado para o outro, outros sobraram e foram mortos e alguns precisaram ser reavaliados, mas todos tinham sua dose de carisma.
O núcleo de humor liderado por Johnny Massaro e Tatá Werneck funcionou de forma espetacular. Mesmo às vezes exilados em algum lugar “tão tão distante” da trama principal, a dupla conseguiu roubar a cena, arrancar risadas e servir como alívio cômico sem parecer destoante do resto da produção.
Outro mérito da telenovela foi a representação das personagens mulheres e suas funções narrativas. De forma surpreendentemente natural, as mulheres de Deus Salve o Rei foram conduzidas como protagonistas da obra.
No começo, tudo levava a crer que as questões de gênero ficariam restritas a personagem Selena (Marina Moschen), a primeira mulher a frequentar a academia militar. Selena cumpriu bem com seu propósito, mas a surpresa foi ver que as personagens mulheres transitavam por todos os espaços. E, não raras vezes, o texto da novela se empenhou em discutir justamente o papel de suas personagens naquele universo – como quando Afonso discursou contra a caça às bruxas em seu reino ou quando personagens homens eram confrontados com a presença de Selena em determinadas posições.
Bruna Marquezine superou a atuação robótica do início da trama e fez com que sua vilã Catarina ganhasse o carinho do público. Selena e Amália (Marina Ruy Barbosa) lutaram, física e intelectualmente, de igual para igual com soldados homens. Selena virou chefe da guarda real, quebrou o estereótipo de bruxa má – que nem chegou a ser explorado pela novela, outra positiva surpresa – e ficou na linha de frente das batalhas com rei Afonso (Rômulo Estrela). Amália também apareceu sempre ao lado do rei ou em suas próprias batalhas. Diana (Fernanda Nobre) foi perspicaz e à Lucrécia (Tatá Werneck) coube o papel de debochar dos homens com sabedoria.
Claro que todas elas são mulheres brancas padrão, mas é válido ressaltar que, mesmo que muito da fórmula novelesca tenha sido mantida, tanto a proposta estética de Deus Salve o Rei, quanto suas personagens – e a forte parceria que houve entre elas – dão um frescor inesperado e positivo a história ambientada na Idade Média.
Assim, a produção que tinha tudo para cair no mais conservador que o período ao qual se refere poderia inspirar, preferiu tratar a caça às bruxas como algo reprovável, por exemplo. E, ao mesmo tempo em que rivalizou Amália e Catarina por conta do amor pelo mesmo homem, uniu Amália, Selena e Diana. Um trio de mulheres que se apoiavam e protegiam.
Nesse contexto nasceu, despretensiosamente e por conta de uma brincadeira entre Marquezine e Ruy Barbosa, o funk de Deus Salve o Rei. Um clipe engraçadíssimo de pouco mais de três minutos, escrito por Tatá Werneck e Vinicius Calderoni (5 a seco) e realizado pelo elenco e pela produção. Nele, os atores cantam uma espécie de sinopse da novela e, com bom humor, convidam os espectadores a assistirem aos últimos episódios.
A brincadeira foi bem recebida pela audiência – principalmente a da internet. Algumas pessoas chegaram a comentar que se o clipe tivesse sido lançado antes, elas teriam se interessado mais pela novela. É bem possível, então, que o estranhamento do público a novas propostas de narrativa seja gerado fundamentalmente pelo medo do desconhecido. Bastou um clipe de funk para que algum tipo de identificação e curiosidade brotasse em quem não acompanhava a produção.
De acordo com o site TV Foco, Deus Salve o Rei registrou na terça-feira (24) sua maior audiência desde a estreia, em janeiro. Coincidência ou não, o clipe da paródia de funk havia sido lançado alguns dias antes. Combinar novelas mais sérias, com forte apelo fantástico, com divulgações mais divertidas seria então uma boa opção? O funk teria salvado o Rei?
A novela de Daniel Adjafre foi mais um considerável passo rumo a possibilidade de experimentações. Deus Salve o Rei não chega aos pés do hype de Game of Thrones, e nem poderia. São linguagens diferentes. Mas a obra contribuiu, à sua maneira, para abrir novos horizontes no universo das novelas, mostrar que produções nacionais também podem fazer uso de bons efeitos especiais e provar que com um bom elenco e texto, qualidade técnica e criatividade, é possível contrapor o antigo e o contemporâneo.
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