E se as suas tão cuidadosamente planejadas férias em família acabassem virando um martírio por conta de imprevistos e lugares abarrotados de turistas? Já pensou se essas férias frustradas se transformassem num filme que mistura comédia, suspense e elementos de surrealismo e horror? Esse filme existe, está disponível na Netflix e se chama Tempo Compartilhado.
Dirigido por Sebastián Hoffman, o longa ganhou o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Sundance e tem marcado presença nas listas de melhores filmes mexicanos de 2018, ao lado de filmes como Museu e Roma.
Sua proposta temática é clara: denunciar a indústria turística, expondo como o capitalismo selvagem é capaz de nos alienar e angustiar até quando o assunto é descanso. Sua realização, por outro lado, recorre a abstrações diversas. Tempo Compartilhado é um projeto ambicioso e exige que o espectador esteja disposto a vivenciar a experiência, digamos.
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Na trama, Pedro (Luis Gerardo Méndez) aproveita uma promoção para poder descansar com a esposa e o filho em um resort chique. Chegando lá, certo de que encontraria um paraíso cheio de felicidade para suas férias, o personagem descobre que o lugar concedeu mais vagas promocionais do que era capaz de comportar e que, agora, sua família terá que dividir o apartamento com outra família.
Daí por diante serão noites dormindo no sofá-cama, acordando ao som de bóias sendo enchidas, enfrentando piscinas e restaurantes lotados e convivendo com atividades cafonas propostas pelo resort. À medida que suas expectativas com as férias em família começam a ser frustradas, Pedro passa a acreditar que os contratempos que tem vivido são parte de um plano macabro do lugar.
Até aqui, a sinopse renderia um bom filme de comédia – e o longa sabe tirar proveito disso. No entanto, na outra ponta da narrativa está Andrés (Miguel Rodarte), um funcionário que trabalha no resort há anos, já passou por um trauma familiar ali e, com a recente venda do lugar para uma enorme rede de resorts gringos, perdeu seu cargo de respeito e passou a ser tratado como um funcionário igual a qualquer outro.
Tempo Compartilhado faz parte da safra de filmes contemporâneos que usam elementos fantásticos, surreais e de horror para tratar de coisas aparentemente banais do cotidiano do cidadão médio, dando outro significado a elas – geralmente um significado mais crítico. No Brasil, ele se assemelha a filmes como Mate-me Por Favor, de Anita Rocha da Silveira, e Trabalhar Cansa, de Marco Dutra e Juliana Rojas.
Junto do roteirista Julio Chavezmontes, Hofmann usa o argumento das férias para tecer críticas sociais muito certeiras. Afinal, é justamente durante situações que parecem banais que o ser humano demonstra suas peculiaridades. Por isso, nesse enredo não há heróis de índoles impecáveis. Filmes como esse geralmente são ricos não somente em diversidade de gêneros cinematográficos, mas também em complexidades de personagens e em subtextos; eles são eficientes ao propor “desafios” de linguagem e imagem ao público.
Andrés e Pedro são complementares entre eles e opostos às suas esposas. Enquanto o primeiro é afetado no âmbito do trabalho e da saúde mental, o segundo é afetado no quesito lazer e família. Suas esposas, entretanto, representam vítimas que se deixam levar pelas coisas como elas são. Eva (Cassandra Ciangherotti), esposa de Pedro, assume a postura de relevar os infortúnios da viagem e aceitar de bom grado as recompensas que o lugar oferece pelos transtornos. Já a esposa de Andrés decide embarcar de cabeça no novo modus operandi do trabalho.
São dois protagonistas e duas perspectivas sobre a entrada de capital estrangeiro no resort que antes era um negócio local. Para Andrés, a venda significou perder sua dignidade no trabalho e ser só mais uma pecinha mínima no jogo das grandes transações. E Pedro, por sua vez, sentiu-se tragado por uma cultura de massa da alegria e da satisfação, sem ter o direito de se opor ao que lhe parece absurdo.
Ambos estão presos a dinâmicas que odeiam e que são claramente destrutivas. Os personagens identificam o que há de autoritário no modo de vida proposto pelo resort, assim como os discursos que funcionam como lavagem cerebral coletiva nos hóspedes enfeitiçados pela promessa de férias incríveis. São processos que poderíamos até comparar com uma distopia.
No tal paraíso há a constante obrigação de estar sempre feliz, mesmo quando nada sai como o planejado. Mas ao passo em que a paranoia de Pedro cresce e a melancolia de Andrés se torna insustentável, parecer feliz soa como algo muito distante. Diante de tanta insatisfação, uma atmosfera claustrofóbica e opressiva envolve os personagens, que tentam escapar. Ai percebermos que resistências individuais dificilmente mudam estruturas, e que o ciclo está pronto para reiniciar.
A tensão gerada durante Tempo Compartilhado é fruto da combinação da narrativa com elementos de gêneros distintos, comportamento de personagens, montagem, cores da fotografia e ruídos da trilha. São muitos detalhes. O espectador nunca consegue imaginar exatamente o que vai acontecer conforme a história avança. Nota-se somente que não se trata de um filme sobre monstros, fantasmas, ou conspirações malignas. Trata-se de um filme com metáforas para os movimentos taciturnos do avançar do capital sobre a vida das pessoas. Algo tão assustador quanto monstros, convenhamos.
Ficha técnica
Direção: Sebastián Hofmann
Duração: 1h36
País: México
Ano: 2018
Elenco: Cassandra Ciangherotti, RJ Mitte, Luis Gerardo Méndez, Miguel Rodarte
Gênero: Drama
Distribuição: Netflix
O filme é mediano, na minha opinião, com bons atores. Faltou capricho para finalizar, talvez tenha faltado verba. Precisa assistir com atenção para entender algumas metáforas: o flamingo rosa em pleno México, como uma invasão do novo estilo de lazer.