No próximo dia 1º de abril, completam-se 55 anos do golpe militar, civil e empresarial que depôs a democracia do então presidente brasileiro, João Goulart. Os vinte e um anos que sucederam-se à data marcam um longo período de perseguições, exílios políticos, opressões estruturais e assassinatos. Para relembrar-nos daquela época – e de suas graves consequências vigentes –, o longa-metragem nacional Pastor Cláudio, que estreou no último dia 14 (março) nos cinemas, aparece não somente como uma fonte de informação, mas também como um documentário necessário às noções de humanidade dos cidadãos.
Tal como já dito, e pelas palavras de Eduardo Passos, psicólogo e ativista dos Direitos Humanos, no filme, o golpe fora civil e empresarial, além de militar. Logo no início do longa de Beth Formaggini, o ex-delegado do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e, agora, bispo evangélico Cláudio Guerra – autoproclamado Pastor – confirma calmamente a tripla “classificação” do golpe de 1964.
A partir daí, acompanhamos uma sucessão de relatos escabrosos dos crimes hediondos do bispo durante a ditadura – e contados por ele mesmo a Passos, por quem é entrevistado ao longo de todo o filme. Em uma sala escura com um projetor, a produção expõe ao pastor, e através do psicólogo, imagens de arquivo de diversas vítimas; muitas das quais foram mortas ou tiveram seus corpos incinerados por Guerra.
De modo chocante e extremamente frio, o entrevistado conta detalhes encobertos do ataque a bomba à sede da OAB, da morte da estilista Zuzu Angel e de diversos outros militantes comunistas – cujas famílias jamais encontraram os corpos. A certa altura, em um dos momentos mais aversivos do longa-metragem, o pastor aceita de prontidão encenar uma de suas execuções por arma de fogo.
Mesmo que Guerra diga-se arrependido de seus atos do passado e que, segundo ele próprio, foram motivados por sua “cabeça fraca” – que aceitava regalias dos militares para agir como tal –, não há qualquer sinal de compreensão no semblante do pastor quanto à dimensão de seus crimes. Quando ele afirma jamais estar envolvido com tortura, por exemplo, simultaneamente diminui a gravidade dos assassinatos a sangue frio e das ocultações em série de inúmeros cadáveres.
Há também outro momento marcante do filme, em que Guerra denuncia o sadismo compartilhado entre ele e sua equipe, simbolizado pela fala na qual admite abrir o saco de lixo de um dos corpos, por curiosidade em ver o rosto do cadáver. Quando questionado por Passos sobre as motivações da mórbida curiosidade, o bispo mal sabe explicar o porquê.
Em meio àquela avalanche de confissões terríveis, é esperado que nada mais surpreenda o espectador ao longo dos quase oitenta minutos de documentário. Afinal, o teor das histórias do pastor Cláudio perde um pouco o impacto, à medida em que a maldade de seus atos torna-se simplesmente banal ao contexto.
(Trailer oficial):
É claro que, ainda assim, cada frase ali dita não deixa de ser impactante. Mas, é interessante observar a dinâmica com a qual não somente o bispo trabalhava na ditadura, como também outros assassinos ou torturadores ao redor do mundo. Enquanto muitos deles podem ser motivados apenas por prazeres sádicos, outros tantos podem simplesmente desligar-se de quaisquer sensações de empatia ou compaixão para com o próximo, e passar a atuar no modo automático – graças às recompensas materiais adquiridas em troca disso tudo.
Como bem colocado pela filósofa alemã e judia Hannah Arendt (1906-1975), a partir de sua obra Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal – e a qual serviu como material de estudo para o filme –, o mal deve ser analisado sob um viés essencialmente político; quando atinge grupos sociais ou governos de diferentes nações. Ou, para melhor explicar, a concepção de maldade não tem uma origem natural ou metafísica, mas sim política e histórica. Portanto, o mal é criado pelos homens e desenvolve-se institucionalmente; aonde for mais propício.
É em cima disso que a proposta do documentário firma-se. Ao entrevistar Pastor Cláudio, o ativista Passos procura analisa-lo também friamente, até para manter uma distância segura do conteúdo atroz daquilo que é contado. Assim, Pastor Cláudio, o filme, revela-se um material extremamente necessário aos dias de hoje – principalmente a quem crê nas instituições militares sem, ao menos, contestá-las.
*Pastor Cláudio está em cartaz nos cinemas até a próxima quarta-feira (27). Clique aqui para conferir os locais de exibição.
Ficha técnica
Direção: Beth Formaggini
Duração: 1h16
País: Brasil
Ano: 2019
Elenco: Cláudio Guerra, Eduardo Passos
Gênero: Documentário
Distribuição: ArtHouse
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