ATENÇÃO: Este texto pode conter spoilers!
Violência de gênero, conservadorismo, maternidade, diferenças de classe e perversão do sistema judicial: estes são alguns dos tantos ingredientes que fazem de Crimes de Família, longa-metragem argentino distribuído pela Netflix, uma obra de enorme relevância temática.
Dirigido por Sebastián Schindel e inspirado em fatos reais, o filme tem como protagonista Alicia (Cecilia Roth), mulher de classe média alta que mora com o marido em Buenos Aires, num apartamento de alto nível.
Orgulhosa de sua posição de matriarca numa família tradicional burguesa, Alicia faz de tudo para abafar a fama de problemático de seu único e superprotegido filho, Daniel (Benjamín Amadeo). Porém, a personagem vê a rotina de ioga e chá com as amigas ir por água abaixo quando Daniel é preso, acusado de estupro e tentativa de homicídio contra a ex-esposa, Marcela (Sofía Gala Castiglione).
Incomodada pelos comentários de conhecidos e desesperada para livrar o filho da cadeia, Alicia acaba envolvendo-se mais do que deveria com o processo judicial. Ao mesmo tempo, Gladys (Yanina Ávila), empregada doméstica da família, também se transforma em protagonista de um crime.
De narrativa simples, apesar de um inicial e conturbado vai e vem temporal, Crimes de Família se vale do suspense para costurar drama familiar e drama de tribunal. E embora pareça pouco promissor por ser bastante básico em sua evolução como filme de gênero, o longa cresce enormemente graças ao desenvolvimento de Alicia, que, cozido a fogo baixo e sustentado pela potência da interpretação de Cecilia Roth, resulta em um excelente estudo de personagem.
O FEMININO E A ARGENTINA
As manifestações feministas que tomaram as ruas argentinas nos últimos anos, reivindicando o direito de mulheres terem soberania sobre os próprios corpos, ainda não foram vitoriosas no legislativo, mas alcançaram discutir problemáticas de gênero, classe e raça com força impressionante.
O impacto político da maré verde, como ficou conhecido o conjunto de manifestações, marcou a contemporaneidade latino-americana ao também cruzar as fronteiras da região. Inevitavelmente, a mensagem das ruas reverbera no cinema dedicado a questões de seu tempo – seja no documental ou no ficcional. É o caso de Crimes de Família.
Visivelmente preocupado em representar diferentes experiências femininas, o filme sintetiza a partir das dinâmicas de um núcleo familiar tradicional muitos dos desafios que costumam atravessar o ser mulher nas cosmopolitas capitais da América Latina: cidades onde convivem a modernidade e o conservadorismo; cidades marcadas por todas as contradições e sociabilidades típicas do sul global, mas também por crescentes focos de energia transformadora.
A MULHER ALICIA
Alicia é esposa, mãe, avó. Uma mulher branca em situação financeira confortável, estável em um casamento de décadas, apegada a sua bolha social e em negação sobre a moral falida da instituição família tradicional. Extremamente condescendente com os “erros” do filho e, por outro lado, implacável em seu juízo de valor sobre a realidade de outras mulheres – ainda que certa de ser símbolo de benevolência por permitir que Gladys viva no apartamento da família com seu pequeno filho. Para ela, a maternidade é virtuosa e as histórias sobre violência de gênero parecem mais invenção de mulheres despeitadas.
Mas Alicia nada sabe (ou quer saber) sobre Gladys, que vive debaixo de seu teto. E sabe menos ainda sobre Marcela, sua ex-nora. Para Marcela, o nascimento do filho representa um elo eterno com seu suposto agressor. Já Gladys, uma mulher não branca, semianalfabeta, orfã e pobre, nunca sequer teve condições ou tempo de pensar sobre o significado da maternidade.
A prisão de Daniel funciona, então, como o início do rompimento da bolha de Alicia. A violência, afinal, pode estar mais perto do que ela jamais havia suposto; e as mulheres que tanto ignorou ao longo da vida podem ter algo a revelar sobre as implicações de sua posição no jogo social.
Claro sobre a mensagem que deseja passar, Crimes de Família resulta competente e agridoce. Otimista a respeito das transformações que se tornam possíveis quando bolhas são superadas por empatia e solidariedade, mas consciente de que ainda há enormes limites nas disputas em andamento – e de que determinadas mulheres são mais afetadas por tais limites.
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Ficha Técnica:
Direção: Sebastián Schindel;
Duração: 1h39
País: Argentina
Ano: 2020
Elenco: Cecilia Roth; Miguel Angel Sola; Sofía Gala, Yanina Ávila, Paola Barrientos, Benjamín Amadeo
Gênero: Drama, Suspense
Distribuição: Netflix
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