Brigas de novela: por que sempre entre mulheres?

Na semana passada, a novela Deus Salve o Rei exibiu uma cena bastante esperada por aqueles que acompanham a novela: a briga entre Amália (Marina Ruy Barbosa) e Catarina (Bruna Marquezine). Pela amizade real entre as atrizes, e também graças ao revanchismo imposto por parte de seus fãs – através do qual muitos se preocupam com qual seria a mais bonita e talentosa –, a cena em que Amália, descontrolada e provocada pela vilã de Marquezine, dá tapas em sua rival, já era notícia antes mesmo de ir ao ar.

A Rede Globo, por estar plenamente ciente de que momentos como o da novela das sete (em que duas mulheres trocam socos e ofensas uma à outra) são picos de audiência, divulgou imagens das atrizes assistindo à própria cena instantes depois da gravação.

Catarina (Bruna Marquezine) e Amália (Marina Ruy Barbosa) / reprodução Instagram ‘Deus Salve o Rei’

 

ROSTO DESFIGURADO

Recentemente, outro folhetim exibiu uma cena de violência física entre suas protagonistas. Celebridade (2003), que foi ao ar pela segunda vez através do Vale a Pena Ver de Novo, mostrou, na íntegra, o famoso momento em que Maria Clara (Malu Mader) dá uma surra em Laura (Cláudia Abreu), no banheiro de um evento de gala.

Em entrevista a O Globo, no final do ano passado, Mader e Abreu comentaram certo desagrado ao encenarem uma cena tão violenta como a da surra em Laura. A vilã apanha tanto que vai parar no hospital, com o rosto todo desfigurado e a perda de um dente. “Tive que enfrentar uma certa batalha interna. De alguma forma, rejeitei a cena antes de gravar (…) Para mim, uma heroína teria uma atitude diferente”, frisou Malu Mader sobre sua personagem, a mocinha da trama.

Laura (Cláudia Abreu) e Maria Clara (Malu Mader) / Divulgação

Para Cláudia Abreu, não foi muito diferente. “Na hora da gravação, pedi para reagir. Quando você apanha, revida! Mas Dennis [Carvalho, diretor de núcleo] disse que a vontade do público era ver a Laura apanhando. Ela perdia um dente, ficava desfigurada… Achei que não precisava tanto”, relembra a intérprete da vilã que rouba tudo de Maria Clara.

 

MOTIVAÇÕES

Se listarmos as brigas mais famosas das novelas brasileiras, além da de Celebridade, temos a de Maria do Carmo (Suzana Vieira) e Nazaré (Renata Sorrah), em Senhora do Destino (2004); a de Melissa (Christiane Torloni) e Yvone (Letícia Sabatella), em Caminho das Índias (2009); a de Maria Eduarda (Gabriela Duarte) e Laura (Viviane Pasmanter), em Por Amor (1997), e a de Joyce (Maria Fernanda Cândido) e Irene (Débora Falabella), em A Força do Querer (2017).

Em Senhora do Destino, a icônica Nazaré também fica com o rosto bastante machucado (assista aqui, a partir do minuto 07:09), tendo de mentir para a filha Isabel (Carolina Dieckman) que apanhou de agiotas. O motivo, na verdade, e como é de conhecimento de grande parte do público, foi o sequestro de Isabel ainda bebê – roubada de Maria Carmo, sua mãe verdadeira. Num embate de mais de vinte anos depois, a protagonista de Vieira reconhece Nazaré e agride a vilã fisicamente.

Nazaré (Renata Sorrah) / Divulgação

Agora, quanto às demais cenas citadas, todas as personagens têm praticamente os mesmos incentivos para brigar: disputa pelo amor (ou fidelidade) de um homem. Em Por Amor, Maria Eduarda empurra Laura, acidentada e em uma cadeira de rodas, em uma piscina, depois de proferir um discurso risível sobre o orgulho de ser ciumenta. Mesmo sendo a mocinha, Maria Eduarda foi um dos personagens mais impopulares de folhetins da Globo. Surgiu até mesmo uma campanha pela morte de Eduarda, lá nos primórdios da internet.

 

NAS NOVELAS DE GLÓRIA PEREZ

Já a personagem Melissa, em Caminho das Índias, resolve se vingar de Yvone, a grande antagonista da trama, quando descobre que a vilã vinha dando em cima de seu marido. Tal como em Celebridade, Melissa sobe em cima da agredida, em uma sala de massagens, e bate em Yvone até ela ficar com o rosto completamente machucado.

Não foi diferente em A Força do Querer (de Glória Perez, mesma autora de Caminho das Índias). Em um banheiro de restaurante, após a personagem Joyce ouvir provocações de Irene, a primeira arremessa um sapato na cara da vilã – extravasando, da pior forma possível, a dor de ter sido traída pelo marido. Em seguida, a protagonista Ritinha (Isis Valverde), nora de Joyce, faz o mesmo que Maria Clara, em Celebridade, e Melissa, em Caminho das Índias: põe a vilã debaixo de suas pernas, em uma posição estratégica, e lhe defere inúmeros tapas.

Irene (Débora Falabella) e Joyce (Maria Fernanda Cândido) / Divulgação

Mesmo com a aclamação de A Força do Querer por parte da crítica, graças às suas discussões sociais muito pertinentes – como a questão dos transgêneros e os horrores do tráfico de drogas –, a autora (que é uma das poucas mulheres a escreverem novelas) viu na cena de vingança um momento de contemplação digno do público.

 

PROBLEMÁTICAS

Apesar de as agressoras encontrarem motivos válidos para se descontrolarem, agir como tal reforça vários estereótipos de gênero; como o de que mulheres são briguentas e tempestuosas. Se pararmos para pensar em nomes masculinos que protagonizam cenas icônicas de briga, dificilmente vem algum às nossas cabeças.

Pôr a mocinha da trama em uma situação como essa, de vingativa e violenta, mostra aos telespectadores brasileiros que esse tipo de comportamento é aceitável. Mocinha, aliás, é um termo que merece certo cuidado. Não é como se a Nina (Débora Falabella), de Avenida Brasil, fosse uma heroína, por exemplo. Mesmo sendo a protagonista, Nina era tida mais como uma anti-heroína – tanto que, no último capítulo, ela e a vilã Carminha (Adriana Esteves) pedem perdão uma à outra.

Laura, após levar surra de Maria Clara / reprodução Globoplay

A mocinha é uma figura eticamente correta, inteligente e empática. Portanto, aquelas que batem em outras mulheres, e ainda mais, por causa de motivos nem tão relevantes – como conflitos amorosos –, podem ficar no imaginário brasileiro como “violentas, quando convier”.

Precisamos estar atentos a esse tipo de cena, e saber separar os ideais de moralismo propostos pela televisão da ética realista – pelo menos, enquanto cenas como essas forem comuns em nossas novelas.

 

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