A Netflix não é muito diferente de uma grande produtora de filmes

Em 2013, quando a Netflix lançou sua primeira websérie original, House of Cards, diretamente na plataforma de streaming da empresa, o mundo mal fazia ideia da verdadeira revolução cultural que estava por vir. Desde então, a provedora de filmes e séries tornou-se uma poderosa produtora de conteúdo – tendo não somente obtido centenas de milhões de assinantes, como, principalmente, alcançado um lugar de prestígio na “nata” do cinema mundial.

Neste ano, por exemplo, o longa-metragem distribuído pela plataforma, Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipiconquistou quatro indicações ao Oscar: Melhor Atriz Coadjuvante (para Mary J. Blige), Roteiro Adaptado, Fotografia e Canção Original. Além de Mudbound, outros três filmes do streaming receberam indicações na mesma edição – Ícaro e Strong Island, ambos em Documentário em Longa-Metragem, e Heroin(e), em Curta-Metragem.

‘Mudbound’ / Divulgação

Mesmo que isso represente um divisor de águas no modo como a Netflix é vista pelo senso comum (o que confirmou ainda mais sua alta capacidade de produzir material de qualidade), a história de suas obras no Oscar não é de agora. Em edições anteriores, os originais What Happened, Miss Simone? e A 13ª Emenda foram indicados na categoria de documentário em longa-metragem (em 2016 e 2017, respectivamente). Também no ano passado, o curta-metragem Os Capacetes Brancos deu à empresa de streaming sua primeira vitória.

Para que um filme distribuído por uma mídia alternativa (que não seja o cinema) concorra aos prêmios Oscar, no entanto, é preciso que, inicialmente, a produção seja lançada nas telonas. Por ser um longa independente, e apenas cuja parte dos direitos de exibição foi comprada pela Netflix, Mudbound entrou facilmente nos critérios de seleção dos indicados da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Ainda assim, a empresa de streaming se firma no mercado mundial não como uma plataforma qualquer de distribuição de filmes e séries, mas, principalmente, como uma grande produtora.

Qual seria a maior diferença entre a Netflix e as também gigantes Warner Bros. e Universal Pictures, por exemplo? E quanto a Walt Disney Pictures, que afirmou recentemente que irá lançar duas plataformas de streaming? Seria apenas o fato de que a Netflix, ao invés de estrear seus conteúdos originais no cinema e suas séries na TV, com um episódio por semana, lança tudo diretamente em seu site, de uma vez só? Talvez.

Pôster de ‘What Happened, Miss Simone?’ / Divulgação

A verdade é que a única diferença entre a Netflix e as demais produtoras e canais de televisão consiste justamente no modo como o material da primeira nos atinge. Isso significa que, por ter redefinido o conceito de “maratona de séries”, tendemos a enxergar o streaming como algo único, inédito nesta década e totalmente diferente das formas convencionais de se fazer cinema e TV. Mas, precisamos reconhecer o simples fato de que uma série de dez episódios, “despejada” inteiramente na plataforma, não apresenta um formato nem um pouco diferente de um programa semanal, como a popular Game of Thrones, da HBO, ou, ainda mais, de um longo filme, dividido em inúmeras partes.

É claro que, seguindo esse pensamento, as chamadas sitcom (comédias de situação, como Fuller House, por exemplo) não poderiam ser vistas como um longo filme. Mas, a maioria dos lançamentos originais da Netflix, por adotarem o formato clássico de um enredo contínuo – que se complementa a cada episódio, como um longa-metragem entre suas cenas –, cabem muito bem em tal interpretação visual. Nós, consumidores, pertencemos à geração que, pela primeira vez na história, está tendo a oportunidade de escolher exatamente quando assistir à temporada completa de um programa. Portanto, o que mudou não foram os formatos, mas sim o imediatismo com o qual acessamos esse tipo de conteúdo atualmente.

Outro ponto importante diz respeito à questão dos famosos algoritmos da Netflix. Esse sistema tecnológico consiste no recolhimento de informações da comunidade global, ou seja, de como os indivíduos ao redor do mundo estão se comportando diante do material que lhes é oferecido na plataforma. Quando terminamos de assistir a uma série policial e, em seguida, recebemos a recomendação de um outro programa do gênero, por exemplo, estamos sendo alvo dos algoritmos. Na verdade, a cada passo que damos dentro da plataforma, somos monitorados para, então, continuarmos a receber dicas de conteúdo do streaming em questão, assim como para a empresa formar um banco de dados que poderá lhe ser útil em produções futuras.

‘Os Capacetes Brancos’ / Divulgação

Tal característica é exclusiva das mídias de streaming. Antes da internet e de seus avanços dos últimos dez anos, a monitoração de informações e gostos pessoais era algo comumente usado para espionagens políticas ou garantia de integridade física (através de ferramentas de segurança). Hoje em dia, no entanto, essa concepção mudou drasticamente. Somos parte de uma sociedade que permite passivamente o próprio monitoramento. E, a partir daí, empresas como a Netflix sentem-se livres para investigar nossas preferências, com fundos totalmente mercadológicos.

Ainda que a frequência com a qual consumimos o material das plataformas de streaming seja, de fato, inédito, e que o sistema de algoritmos dependa de padrões expressivos de acesso à internet, essas plataformas midiáticas não oferecem conteúdo diferenciado. Até então, temos os bons e velhos filmes e séries produzidos em estúdios, por equipes relativamente grandes, com estágios de pré e pós-produção, além das filmagens. Em tempos em que os limites entre TV, streaming e cinema se confundem, e já nem mais sabemos a que categoria uma produção específica possa pertencer – como o caso excluso e peculiar de Mudbound –, o início de uma reflexão ampla e aprofundada sobre o assunto é necessário.

 

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