A Espanha parece estar tomando um novo rumo no que diz respeito a representação de mulheres em séries de TV. Nos últimos tempos, o país conseguiu ganhar visibilidade internacional com três séries distribuídas pela Netflix (As Telefonistas, La Casa de Papel e O Ministério do Tempo) e despontar como produtor competente de séries de alta qualidade.
Além do sucesso de crítica e público, outro fator une essas três obras: elas não trazem estereótipos de personagens mulheres fortes apenas para agradar determinado nicho de público, como muitas produções têm feito. Pelo contrário, elas trazem representações de mulheres reais. Um passo importante quando o assunto é representatividade.
Existem dois tipos de personagens mulheres fortes: aquelas que convencionou-se chamar de mulheres fortes por serem personagens complexas, com motivações, personalidade delineada e cuja subjetividade é explorada por um roteiro rico e elaborado. E aquelas que possuem a única função de muleta narrativa.
O primeiro caso diz respeito a mulheres que são reais, possíveis. Mulheres que erram, acertam, contribuem para a trama de diversas maneiras. Chamá-las de fortes não significa que existam mulheres fracas. Neste caso, a nomenclatura tem mais a ver com a construção dedicada da personagem em questão.
Já o segundo caso se aproxima das personagens que, na trama, existem mais como elemento de favorecimento aos arcos masculinos do que qualquer outra coisa. Nessas situações, a personagem é forte porque é. Não chegamos a conhecê-la, poucas informações nos são fornecidas sobre ela. Sabemos que ela pode ser curiosa, destemida, corajosa, inteligente e só. Para a narrativa, as características são importantes, não a personagem em si.
Para esse tipo de produção, o fundamental é surfar na onda das demandas femininas sem de fato fornecer qualquer tipo de representação de qualidade. Coloque uma mulher forte e agrade o público feminino sem fazer muito esforço, afinal, até para a imagem da mulher forte existe um molde.
Basta observar a história do cinema – hollywoodiano, principalmente – para perceber que personagens femininas fortes sempre existiram. Renomados diretores da indústria cinematográfica mundial fizeram filmes com mulheres que se destacaram, mas tomemos Alfred Hitchcock como exemplo. Algumas de suas principais obras eram quase que co-protagonizadas por mulheres fortes, no entanto, muito pouco sabemos sobre as personagens. Elas possuem características do que é tipicamente atribuído a mulheres fortes porque é conveniente ao desenvolvimento do arco de personagens homens.
Em Janela Indiscreta (1954), por exemplo, a personagem Lisa Carol Freemont (Grace Kelly) é uma jovem de família abastada, mas que, independente, trabalha para ter sua própria carreira. Quando o protagonista, interpretado por James Stewart e impedido de andar por conta de sua perna quebrada, precisa descobrir o que acontece no prédio da frente, a moça logo se candidata a ir averiguar em seu lugar. O problema é que, mesmo demonstrando toda sua coragem e curiosidade, a personagem é restrita e não oferece muito mais do que servir como muleta para levar o conflito do outro prédio até o protagonista homem.
Voltando ao caso das novas produções televisivas espanholas, é impossível não perceber que elas se valem de uma representação feminina muito natural, justa e destoante da “mulher forte, muleta narrativa”. Nessas três produções recentes de grande repercussão, as personagens são, de fato, excelentes. E é sobre elas que vamos falar.
AS TELEFONISTAS
As Telefonistas (Las Chicas del Cable) foi a primeira série espanhola a estrear na Netflix e causar algum burburinho. Das três, esta é a única que possui uma abordagem mais feminista.
Ambientada na Espanha de 1928, a produção original Netflix acompanha a vida de quatro mulheres: Alba/Lídia (Blanca Suárez), Carlota (Ana Fernández), Ángeles (Maggie Civantos) e Marga (Nadia de Santiago). Elas se conhecem durante o trabalho, numa empresa de telecomunicações, e tornam-se amigas. Assim, cada uma dessas personagens explora algum tipo de opressão de gênero, e juntas elas falam principalmente sobre sororidade.
Alba é uma mulher misteriosa. Sua infância e juventude difíceis lhe obrigaram a se envolver com pessoas duvidosas e a impediram de ter uma vida tranquila. Por isso, seu instinto de sobrevivência sempre fala mais alto e ela demonstra ter dificuldade em confiar nas pessoas. Já Carlota, a mais extrovertida do grupo, tem uma vida confortável, mas deseja trabalhar para se livrar da dominação do pai.
Marga, por sua vez, é uma moça ingênua que chega do interior para tentar juntar dinheiro para a família. Em Madri, ela se vê muito mais vulnerável e encontra nas novas amigas um porto seguro para encarar sua nova realidade. E Ángeles é uma funcionária exemplar que divide seu tempo entre o emprego, os filhos e o marido abusivo, violento e traidor.
Claro que nesta série em questão, considerando sua temática e proposta, as personagens mulheres são absolutamente bem desenvolvidas e complexas. Afinal, elas são o foco da narrativa. Mesmo assim, a dinâmica que nasce das relações do grupo é notável. Cada uma possui uma personalidade muito própria e nenhuma é perfeita, mas, em conjunto, elas enfrentam o machismo do século passado, lutam por suas independências, se conhecem e se protegem.
Abandonando qualquer estereótipo de mulher forte, as personagens não estão ali para serem admiradas e amadas todo o tempo por sua coragem ou bravura frente às opressões e injustiças do mundo. Elas são nossas heroínas possíveis. São mulheres muito reais, com qualidades e defeitos, algumas mais cativantes que outras. E tudo bem que seja assim, há razão de ser.
LA CASA DE PAPEL
Quando La Casa de Papel, série do canal espanhol Antena 3, chegou ao Brasil distribuída pela Netflix, duas coisas chamaram a atenção: a rapidez com que a trama sobre um grande assalto à Casa da Moeda espanhola se tornou um fenômeno de público e o quanto aqueles personagens, que representam pessoas marginalizadas pela sociedade, foram capazes de cativar a audiência.
Claro que grande parte do atrativo da série se deve a novelização do ato criminoso e todo o universo que a produção constrói a partir de elementos como as fantasias, trilha sonora (você sabia que Bella Ciao já tem até remix no Spotify?) e magnitude de um plano elaborado por um gênio – que conta com soldados para lutar contra o que é socialmente visto como o “bem” (a polícia), ainda que partindo de interesses individuais, como fabricar dinheiro para si mesmo.
Ao fazer com que o público compre toda a indumentária e ame os vilões humanizados, a série inverte qualquer perspectiva de resultado tradicional sobre a luta entre bem e mal. E isso é exatamente o que faz com que La Casa de Papel seja a novela mais debochada de que se tem notícia.
Num mundo cada vez mais polarizado entre o que é bom e mau, certo e errado, justo e injusto, uma série que chega zombando de seu próprio público ao fazê-lo optar pelos bandidos, é digna de aplausos. E não apenas optar pelos bandidos, mas também torcer contra a polícia, símbolo de ordem, e contra os reféns (Arturito que o diga).
Disso nasce outro mérito da produção espanhola: suas personagens mulheres. Apesar de contar com um elenco majoritariamente masculino, tanto as assaltantes Nairóbi (Alba Flores) e Tóquio (Úrsula Corberó), quanto as reféns e a chefe de operações da polícia encarregada do caso, Raquel Murillo (Itziar Ituño), são personagens formidáveis.
Tóquio é uma legítima anti-heroína. Tão fácil de amar quanto de odiar. Sua personalidade egoísta, impulsiva e explosiva já lhe rendeu momentos muito difíceis na vida, assim como durante o assalto. Em contrapartida, Nairóbi é racional e surpreendentemente empática. Juntas, elas se complementam e são fundamentais para manter um certo equilíbrio na trama – e no plano do Professor (Álvaro Morte).
Já do outro lado do campo de batalha temos Raquel Murillo. A chefe da operação responsável por solucionar o maior assalto da história da Espanha e por resgatar todos os reféns em segurança. Não bastasse tamanho peso em seus ombros, Raquel ainda precisa lidar com colegas homens que duvidam de sua competência e com sua conturbada vida pessoal.
Recém-divorciada, a policial enfrenta os desafios da maternidade solo, um ex-marido abusivo que, por também ser policial, é muito respeitado pelos colegas de profissão, além de uma mãe que sofre com perdas de memória e de seu envolvimento com o Professor.
Vale destacar também que várias das reféns tiveram participação essencial na narrativa. Tanto suas ações quanto suas personalidades foram fundamentais para o contexto da série. Entre elas, Mônica Gaztambide (Esther Acebo), a funcionária da Casa da Moeda que, em meio ao caos do assalto, decide abandonar seu posto de amante de Arturo (Enrique Arce) e toda a estabilidade de sua profissão e se envolver com Denver (Jaime Lorente) por enxergar nele a possibilidade de um outro tipo de segurança.
Assim, em meio à trama mais inesperada, personagens mulheres dividiram, de igual para igual, a cena com os homens. E, mais uma vez, elas não eram mulheres fortes no sentido mais genérico da expressão. Cada uma ali contribuiu com sua subjetividade, provocando admiração, ódio, empatia. Elas provaram que personagens bem construídas são possíveis em qualquer tipo de roteiro, não apenas nos que falam diretamente sobre mulheres, como o de As Telefonistas.
Já diria Nairóbi: Começa o matriarcado!
O MINISTÉRIO DO TEMPO
Além de render um Prêmio Platino de Melhor Série Ibero-Americana para a Espanha, O Ministério do Tempo ainda faz uma bela homenagem ao país. Das três, esta deve ser a série que causou menos burburinho entre o público, mas ainda assim merece estar nessa lista por sua qualidade e por suas personagens.
A produção, que mistura fantasia e aventura, nos apresenta o Ministério do Tempo, o maior segredo do governo espanhol. Uma instituição secreta incumbida de manter a ordem de cada detalhe histórico da Espanha, sendo ele bom ou ruim. Quando algum evento excepcional altera os acontecimentos e causa mudanças na história, uma patrulha viaja no tempo atravessando portas do Ministério que levam aos mais variados anos.
Na atual gestão do Ministério (2015) uma nova patrulha é formada por Alonso (Nacho Fresneda) , que vem do século XVI, Julián (Rodolfo Sancho), de 2015, e Amelia (Aura Garrido), do século XIX. Nesse momento, algo um tanto quanto inusitado para séries do gênero acontece: Amelia é nomeada líder da patrulha. Assim, Amelia Folch, uma das primeiras universitárias da Espanha, se torna a maior autoridade do Ministério durante as missões em outras épocas.
Apesar de ser inteligente, altiva, destemida e corajosa, Amelia nem sempre toma a decisão correta ou sabe exatamente o que fazer, o que a torna absolutamente humana, como qualquer outra mulher. Sem levantar nenhuma bandeira de super-heroína perfeita, a personagem se transforma em linha de frente de uma grande série da maneira mais natural possível.
Irene Larra (Cayetana Guillén Cuervo) é outras das mulheres mais recorrentes em O Ministério do Tempo. Irene é uma veterana do Ministério. Seu recrutamento aconteceu em 1960, quando a personagem, lésbica, foi obrigada pela família a se casar com um homem. No auge de sua infelicidade, Irene tentou se matar e foi impedida por um agente do Ministério, que lhe ofereceu um emprego e a possibilidade de viver em outra época, à sua maneira.
Chefe da logística, é Irene quem recruta Amelia e Julián em 2015. Além disso, a personagem participa ativamente de diversas missões e cabe a ela um dos dilemas mais importantes da série: o Ministério é realmente mais importante que tudo na vida de quem trabalha ali?
Já na função de antagonismo temos Lola Mendieta (Natalia Millán/). A personagem era uma espiã na Segunda Guerra Mundial, quando foi recrutada como patrulheira por Salvador (Jaime Blanch), o grande chefe do Ministério. Depois de algum tempo prestando serviços a instituição espanhola, Lola trai seus companheiros e decide viajar pelo tempo por conta, contrabandeando obras de arte, vendendo informações sobre as viagens e as portas para empresas privadas.
Apesar de inicialmente ser retratada como uma femme fatale sem escrúpulos, os episódios e as temporadas fazem jus à personagem, lhe dando oportunidades suficientes de livrar-se do estigma de vilã e de ir além da dicotomia bem e mal, superando também o estereótipo de megera egoísta tão atribuído às mulheres.
É inquestionável que EUA segue sendo o maior pólo de séries de TV do mundo e, inclusive, produz séries que se pautam cada vez mais nas demandas das mulheres -como The Handmaid’s Tale e Big Little Lies. Mas a ficção televisiva e cinematográfica espanhola vive um excelente momento. O desempenho do país no Prêmio Platino foi impecável e La Casa de Papel já é a série de lingua não-inglesa mais vista da Netflix.
O fato de a Espanha tentar descentralizar a produção e chegar com tamanha força no mercado, com séries que, protagonizadas ou não por mulheres, trazem personagens femininas excepcionais, é um refresco necessário às nossas maratonas e prova que, independentemente da temática e do gênero, toda obra audiovisual deve ter personagens mulheres bem elaboradas.
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