[Coluna] O engessamento das pautas identitárias nas premiações hollywoodianas

Em 2018, os movimentos organizados por mulheres abalaram as estruturas misóginas de Hollywood. Como resultado de feminismos que vêm sendo discutidos nos últimos anos por toda a sociedade, atrizes e trabalhadoras da indústria cinematográfica norte-americana usaram seus espaços em premiações como Globo de Ouro, Sag Awards e Oscar para dar palco aos seus discursos e denúncias sobre violência de gênero e disparidade salarial no cinema.

As manifestações afiadas e fortes demonstrações de irmandade sinalizaram com veemência que a luta feminista em Hollywood não dará passos atrás. Iniciativas como o #metoo e o #timesup são, de fato, caminho sem volta. No entanto, 2019 começa a dar indícios de que, apesar da luta dessas mulheres não retroceder, a indústria sabe bem como contorná-la e  moldá-la ao espetáculo – espetáculo esse que já demonstra sinais de estar com o próprio formato desgastado.

Há anos as grandes premiações hollywoodianas seguem o mesmo modelo engessado, sem proporcionar grandes emoções ao espectador – por isso, o equívoco na entrega do prêmio de Melhor Filme para La La Land, em vez de Moonlight, deve ter sido um dos acontecimentos mais espontâneos da história recente do evento.

O ano de 2018 foi um respiro para esse tipo de celebração careta. As manifestações de atrizes, roteiristas, diretoras e tantas outras trabalhadoras geraram engajamento, principalmente na internet. O problema é que, na prática, nem o bom e velho burburinho parece abrir os olhos da academia e da indústria sobre a necessidade de medidas efetivas de adequação aos “novos tempos”.

Claro que essa mesma indústria não tem outra opção senão receber os apontamentos e denúncias, reconhecendo também que os movimentos em prol das pautas identitárias geram novos padrões de consumo na sociedade e criam novas demandas de representação em tela. Por outro lado, parece estar surgindo uma atmosfera de “conservadorismo velado”. Algo como: deixe que as minorias falem. Nós fingimos que atendemos, cedemos um espacinho camarada, produzimos uma coisinha ou outra que os agrade, entregamos alguns prêmios e seguimos a vida do alto de nossos privilégios de homens brancos endinheirados, donos do entretenimento internacional.

O GLOBO DE OURO 2019

Durante a cerimônia do Globo de Ouro 2019, por exemplo, tudo já parecia muito previsível – como sempre, porque esses shows são meticulosamente planejados e nenhum fio de cabelo fora do lugar é permitido. Você já sabe o que esperar dele. Até mesmo as piadas ensaiadas sobre ausência de representatividade soaram nada naturais. De espontâneo, somente os discursos das atrizes vencedoras e da apresentadora Sandra Oh, primeira pessoa de origem asiática a apresentar o Globo de Ouro.

“Em primeiro lugar, não havia nenhuma cineasta na disputa pelo prêmio de direção (mais uma vez); depois, nenhum longa dirigido por mulher concorria nas categorias de melhor filme de drama ou de comédia/musical, as mais importantes do Globo de Ouro.”, apontou o site Mulher no Cinema.

Fonte: India Legal Stories That Count

Hollywood ainda não consegue mudar seus padrões de produção, tornando-os de fato mais inclusivos e diversos; suas premiações ainda não conseguem prestigiar o trabalho das minorias sociais que ficam atrás das câmeras; e suas cerimônias, momento em que o mundo todo volta os olhos para um mesmo lugar, ainda são desestimulantes e monótonas. Talvez espontaneidade seja justamente o que falta nas premiações hollywoodianas.

Tempos atrás cogitou-se até mesmo criar uma categoria de filmes populares para popularizar o Oscar, por conta do declínio de sua audiência nos últimos anos. Será que essa é uma necessidade real ou Hollywood não entende que o formato de suas cerimônias é o mesmo desde sempre, previsível e enfadonho? Esse tipo de celebração, que não permite que nada seja orgânico, não cativa mais; não empolga.

Voltar um olhar genuinamente atencioso para a diversidade não seria uma melhor saída?  Deixar que a arte se manifeste politicamente e oferecer uma cerimônia mais despretensiosa para o público não seria mais divertido do que armar situações toscas, repletas de “piadas de tiozão”?

O PRÊMIO FÉNIX E AS CERIMÔNIAS LATINAS

Parece que os norte-americanos têm muito o que aprender com os latinos, e o Prêmio Fénix 2018 foi a prova disso. O evento, que aconteceu em dezembro, no México, também não escapou de discursos políticos sobre pautas identitárias, mas soube conduzir tais problemáticas, inerentes às nossas sociedades contemporâneas, de forma infinitamente melhor do que qualquer grande premiação de Hollywood.

Durante a noite, a cantora chilena Ana Tijoux apresentou sua música Antipatriarca. Ao final da apresentação, tanto ela quanto a plateia levantaram lenços verdes em apoio ao movimento Ni Una Menos (Nem Uma a Menos), um dos movimentos feministas atuais mais fortes da América Latina, que começou para exigir a descriminalização do aborto no país.

Depois, foi a vez de Maria Gadú e Tulipa Ruiz cantarem Apesar de Você, de Chico Buarque. Antes da apresentação musical brasileira, a própria cerimônia tinha um discurso preparado. Esse discurso dizia: “A paz parece distante, a desigualdade é um denominador comum. E são os que têm menos, os de sempre, os mais afetados. Nem verdade e nem justiça para eles, elas. Não podemos ser indiferentes. Incorporamos tudo neste trabalho, e isso é parte da nossa resistência. Nosso cinema é testemunha de uma memória que não podemos abandonar, e de outra que podemos transformar”.

Ao final da música, Tulipa e Maria Gadú gritaram “Marielle, Presente!”, relembrando a morte política da vereadora carioca Marielle Franco, morta em março de 2018. Um crime que continua sem resolução.

Maria Gadú e Tulipa Ruiz no Prêmio Fénix 2018

E nem só de lindas e emocionantes cerimônias vive o cinema latino. As premiações latinas e/ou ibero-americanas têm indicado – e premiado – mulheres nas principais categorias. Em 2018, o Fénix contou com quatro mulheres indicadas a Melhor Direção, duas indicadas a Melhor Desenho de Arte, quatro indicadas a Melhor Roteiro e cinco indicadas a Melhor Documentário.

Além disso, atrizes argentinas se uniram ao Ni Una a Menos para denunciar casos de assédio, violência sexual e para falar sobre maternidade compulsória. Para isso, elas criaram a campanha “Mirá cómo nos ponemos” (olhe como nos colocamos). Essa frase deriva de “Mirá cómo me ponés”, que em português significa “olha como você me deixa”, geralmente usada por homens para justificar suas violências, culpabilizando a vítima. A frase foi, então, ressignificada pelas mulheres, e usada nas redes sociais da mesma maneira que o #metoo.

Nesse contexto, as cerimônias latinas demonstram não ter vergonha de suas identidades. Muito menos de extrapolar os limites da bolha do cinema e abrir espaço para os movimentos sociais, incorporando, apresentando e repensando, coletivamente, narrativas sobre o que é questionado socialmente. Indicar ou premiar mulheres não soa como um esforço gigantesco. E o melhor de tudo é que em nenhum momento o peso da autoanálise rouba a riqueza de premiações que são cheias de música típica, alegria e descontração. São eventos vivos e pulsantes.

O QUE PODERIA TER SIDO E O QUE O FUTURO NOS RESERVA

Que incrível teria sido ver Yalitza Aparicio, protagonista de Roma, subir ao palco com o diretor Alfonso Cuarón para receber o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Globo de Ouro. É claro que o tal protocolo não permitiria, mas o mundo deveria ter a oportunidade de ouvir algumas palavras da primeira mulher indígena a estampar uma capa da revista Vogue México. Não transportar a representatividade e a poesia de Roma para o seu palco foi um dos erros imperdoáveis da edição 2019 do evento.

Que bonito teria sido também poder ouvir Lady Gaga agradecer por seu prêmio de Melhor Música para Filmes sem interrupções masculinas e com calma. No pouco de tempo que teve, a cantora aproveitou para dizer que “como uma mulher na música, é muito difícil ser levada a sério na indústria”. Que ironia.

A plasticidade  e a falta de desenvoltura de Hollywood diante de conflitos sociais ainda devem demorar a cair. Até a chegada desse dia, lidaremos com as mesmas cerimônias enlatadas. Sabemos, pelo menos, que existe muita gente empenhada em tomar medidas práticas para promover um cinema mais justo e disposta a martelar incansavelmente na tecla da representatividade, mesmo que para isso seja necessário entrar no jogo do mercado.

O importante, no final das contas, é disputar narrativas, e as narrativas das grandes premiações são fundamentais. Essas são as cerimônias exibidas para todo o mundo e são os filmes que estreiam por toda parte, então esses são os espaços que devem ser ocupados.O embate seguirá sendo duro. Se por um lado feministas, comunidades LGBTs e militância negra não vão aceitar retrocessos, por outro, o status quo segue imperando, ainda que de forma sorrateira, pelas beiradas e longe dos holofotes. Veremos o que o Oscar 2019 nos reserva.


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