Era o Hotel Cambridge e o (não) pertencimento

Era madrugada do feriado de 1º de maio quando o Edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, desabou após um incêndio. O lugar estava ocupado por dezenas de famílias do movimento sem-teto que, desabrigadas, passaram a acampar em frente ao prédio, na praça do Largo do Paissandu, como forma de pressionar a prefeitura por moradia.

Durante semanas, centenas de pessoas ficaram acampadas aguardando alguma atitude do poder público – entre elas idosos, gestantes e crianças. Nesse meio tempo, uma mulher chegou a perder seu bebê depois de entrar em trabalho de parto ali, no meio do acampamento, sem qualquer estrutura e sem atendimento do resgate.

No início de julho (dois meses após o incêndio), 60 barracas ainda ocupavam a praça. De acordo com matéria do jornal O Globo, o governo do estado de São Paulo chegou a oferecer auxílio-aluguel para as famílias desabrigadas, mas, segundo os moradores do edifício que desabou, o valor é insuficiente para alugar qualquer lugar na região e o processo burocrático exige documentos que muitos perderam no incêndio.

Esse  trágico episódio trouxe de volta aos holofotes da esfera pública a questão da luta por moradia na cidade de São Paulo e, por consequência, evidenciou a necessidade de filmes como o Era o Hotel Cambridge, da diretora Eliane Caffé – recém exibido na primeira edição do Festival Internacional de Mulheres no Cinema.

Era o Hotel Cambridge / Divulgação

O edifício Cambrigde foi construído na década de 50 para ser hotel de luxo em São Paulo e faliu no início dos anos 2000. Entre dívidas de IPTU e batalhas jurídicas com os proprietários, o prédio foi ocupado, transformado em moradia popular e, recentemente, serviu de cenário para o longa de Caffé.

Em Era o Hotel Cambridge, a diretora coloca os próprios moradores para interpretarem versões deles mesmos e serem, de alguma maneira, protagonistas de suas histórias e de sua imagem.  Numa linha tênue entre ficção e documentário, eles retratam o cotidiano de uma ocupação, a importância da luta por moradia, como se dão as dinâmicas, os conflitos e, principalmente, como convivem brasileiros e refugiados.

A situação de brasileiros que têm seu direito básico à moradia negado por injustiças sociais já é, por si só, cruel. Essas pessoas são naturalmente marginalizadas, invisibilizadas e jogadas à própria sorte. Por isso, ao acrescentar a questão do refúgio, a diretora traz elementos extras que dizem respeito também à diferença de idioma, de cultura, a xenofobia que existe mesmo no meio das lutas sociais e a carga política que cada indivíduo carrega em si.

Eliane Caffé consegue equilibrar perfeitamente, em sua abordagem ficcionalizada, duas facetas do ex-Hotel Cambridge. Na primeira delas, o edifício é tratado  como componente fundamental da narrativa sobre militância política através da forte figura da coordenadora da ocupação e líder comunitária Carmen Silva. Em uma outra camada, ele é usado também como pano de fundo para tratar das trajetórias de um refugiado colombiano, um palestino e um congolês. Trajetórias que parecem individuais e singulares, mas que dão tom ao coletivo.

Carmen Silva em ‘Era o Hotel Cambridge’ / divulgação

Numa das passagens mais duras do filme, um dos personagens do Cambridge afirma que no prédio vivem refugiados de outros países, sim, mas também os brasileiros que são refugiados em seu próprio país. Por isso, ali seriam todos iguais, todos excluídos. Essas palavras contribuem diretamente para a noção de pluralidade organizada que permeia toda a obra, mas também revelam a dificuldade da convivência.

Apoiados pela direção impecável de Eliane Caffé e pelos grandes atores José Dumont e Suely Franco, os moradores interpretam quem são, o que suas vidas têm a dizer sobre o país, sobre política externa e interna e sobre comunidade, ao mesmo tempo em que questionam -com pertinência – a posição do Brasil diante dos refugiados. Eles são recebidos, mas e depois? como sobrevivem? como se inserem?

Assembleia no Cambridge / divulgação

O sistema não garante cidadania e existência digna para incontáveis brasileiros e estrangeiros. E nós, enquanto sociedade, não conhecemos a trajetória do outro. Desconhecemos as guerras dos que vêm de fora em busca de refúgio e ignoramos nossas próprias batalhas.

Daí a importância de um filme como Era o Hotel Cambridge. Um registro de resistência que desmistifica os preconceitos que rodeiam moradores de ocupações, confere rosto e contexto àqueles que chegam ao Brasil para tentar uma nova vida, expõe tensões sociais, violência policial e estatal, explora a força do coletivo a partir de uma protagonista mulher e, acima de tudo, fala sobre (não) pertencimento.

*O filme está disponível para aluguel no iTunes e Google Play

**Como complemento ao filme de Eliane Caffé fica a indicação do curta Ocupação Hotel Cambridge, documentário de Andrea Mendonça que retrata funcionamento do movimento de moradia sem teto do Centro da cidade de São Paulo, o Frente de Luta Por Moradia (FLM), e se preocupa em registrar todo o trabalho, responsabilidade e organização do movimento.

Trailer de Era o Hotel Cambridge

(Fonte: Vitrine Filmes / YouTube)

Para ler mais sobre a luta por moradia e a realidade das ocupações: Ocupação não é bagunça: histórias, resistência e disputa pela cidade na Mauá

Ficha técnica

Direção: Eliane Caffé

Duração: 1h39

País: Brasil

Ano: 2017

Elenco: Carmen Silva, Isam Ahmad Issa, José Dumont, Suely Franco

Gênero: Drama

Distribuição: Vitrine Filmes

COMENTÁRIOS

2 comentários em “Era o Hotel Cambridge e o (não) pertencimento”

  1. Conheci por acaso agora seu portal. Estáva procurando reverência sobre esse filme, Era o Hotel Cambridge, que vi a pouco no canal fechado Brasil. Perfeita sua colocação sobre o filme. Na era em que estamos vivendo precisamos ainda mais nos interativo da nossa história. Parabéns! Passarei por aqui sempre.

Deixe um comentário