Na última sexta (11), foi exibido o último capítulo de O Outro Lado do Paraíso, novela das 21h da Rede Globo. Escrita por Walcyr Carrasco, a trama contou a história da mocinha Clara (Bianca Bin), que, após passar dez anos internada em um hospício, volta para se vingar de todos que a fizeram mal.
Com direção-geral de Mauro Mendonça Filho, a telenovela fez muito sucesso entre o grande público e os internautas, marcando 38,6 de média geral de audiência. Mas, contrariamente à sua repercussão, a crítica especializada apontou os diversos erros narrativos e representações infiéis da realidade.
HUMOR OFENSIVO
Algo que precisa ser sempre frisado é o fato de que, por mais que a dramaturgia televisiva tenha o papel de entreter, sua correspondência com questões sociais é fundamental para a própria manutenção. Portanto, tratar de temas como racismo, nanismo, prostituição e violência doméstica com descaso ou doses de humor denuncia o caráter de quem acompanhou a novela.
Um dos núcleos mais comentados e criticados foi o do psiquiatra Samuel (Eriberto Leão). No início, o personagem era tido como um gay enrustido, cuja sexualidade era motivo de vergonha extrema e até autodesprezo. Ao longo dos capítulos, o amante de Samuel, Cido (Rafael Zulu), vai morar junto com o médico, sua mãe homofóbica e sua esposa de fachada. Mesmo cientes de toda a situação, a esposa Suzy (Ellen Roche) e a mãe Adinéia (Ana Lúcia Torre) concordam em viver sob o mesmo teto de Cido, sem sequer deixar claro ao espectador qual o tipo de relação existente entre cada um daqueles personagens.
Usando de um humor ofensivo, Carrasco promoveu uma espécie de “cura gay” a Samuel, fazendo-o se afastar de Cido para ele se tornar um típico pai de família heterossexual. Mesmo que o desfecho do psiquiatra tenha sido ao lado do antigo amante, a maior parte da subtrama foi focada em piadas de mau gosto sobre LGBTs – incluindo a porca associação entre homo e transexualidade –, além do desenvolvimento quase nulo da esposa traída Suzy.
PROSTITUIÇÃO E CASAMENTO
Já as prostitutas da cidade de Pedra Santa, representadas como mulheres divertidas e obcecadas por casamento, em nenhum momento serviram de gancho para o autor discutir os horrores presentes na profissão. Duas mocinhas de núcleos distintos, por exemplo, viram na venda do próprio corpo uma alternativa agradável e, até mesmo, um meio de vingança.
Melissa (Gabriela Mustafá) descobriu, na noite de núpcias, que seu marido Diego (Arthur Aguiar) não conseguiria ter relações sexuais com ela, por acreditar que o sexo caberia apenas a pessoas promíscuas. Além da história despropositada, o tratamento para a clara motivação machista do personagem foi igualmente problemática. Diego já havia pagado garotas de programa para se relacionarem com ele, traiu a namorada diversas vezes e ainda foi colocado como apenas um homem doente.
Revoltada e infeliz, Melissa, então, pede o divórcio e leiloa a própria virgindade no bordel da cidade. Isso indica a suposta dependência do bem-estar feminino aos homens, enquanto que a visão moralista de pureza é novamente aproximada ao sexo conjugal.
GAEL, DE ESPANCADOR A HERÓI
Falando em questões machistas, o enredo da protagonista de O Outro Lado, que trouxe debates muito relevantes em seus primeiros capítulos, terminou com uma absurda irresponsabilidade social. Gael (Sérgio Guizé), o ex-marido abusivo de Clara, passa por uma espécie de tratamento espiritual com a médium Mercedes (Fernanda Montenegro) e se redime com o público de todas as atrocidades cometidas. Depois de estuprar a mocinha no dia do casamento e espancá-la diversas vezes, o personagem não sofre nenhum tipo de punição e tem um final feliz.
No último capítulo, Gael salva uma desconhecida do companheiro violento e a leva para realizar um boletim de ocorrência. Mesmo revelando seu passado obscuro, o ex-vilão não desperta qualquer sentimento negativo na personagem e, ainda por cima, conquista um beijo seu. Durante meses, Carrasco perdeu uma ótima oportunidade de tratar a violência doméstica com a atenção que merece – e fechou com “chave de ouro”.
PUBLICIDADE E OPORTUNISMO
Outros personagens, como a racista Nádia (Eliane Giardini), a anã Estela (Juliana Caldas) e Laura (Bella Piero), a jovem abusada pelo padrasto, tiveram problemas descomunais em suas histórias. Através do deus ex machina Mercedes, Nádia praticamente curou seu racismo, tornando-se uma mulher simpática ao público (mesmo tendo proferido ofensas monstruosas à personagem Raquel, de Érika Januza, no passado).
Estela, uma promessa do autor aos espectadores, não cumpriu com nenhuma expectativa, ao ser simplesmente jogada para o escanteio na trama. E Laura, apesar de ter seu drama tratado com um mínimo de sensibilidade, serviu como propaganda ao Instituto Brasileiro de Coaching, quando a advogada Adriana (Julia Dalavia) realizou uma sessão de hipnose para desvendar o passado da jovem.
NONSENSE
Além do péssimo texto e dos diálogos expositivos, os maiores problemas de O Outro Lado do Paraíso estiveram justamente na apropriação de temas importantes e espinhosos para chamar a atenção do senso comum. Posteriormente, as demandas conservadoras foram atendidas com muita habilidade e falta de censura do autor, transformando a novela em uma das mais nonsense e forçadas do horário nobre da Globo.
Agora, a sucessora Segundo Sol, que teve seu primeiro capítulo exibido nesta segunda (15), provocou a indignação de internautas já muito antes da estreia, graças à falta de atores negros escalados para uma novela que se passa na Bahia. Aparentemente, a Globo não segue nenhum padrão de representatividade, já que, quanto mais tarde da noite um programa for exibido, menos pudores com o politicamente correto ele terá. Quem sabe, notificada pelo Ministério Público, a emissora tome decisões mais responsáveis para com o público brasileiro daqui em diante.
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