Mais de 150 anos separam o romance Os Miseráveis, de Victor Hugo, de Os Miseráveis de Ladj Ly; cineasta estreante em longas-metragens. O filme, adaptado de um curta de 2017 do próprio diretor, dividiu o prêmio do júri do Festival de Cannes 2019 com o brasileiro Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e está indicado ao Oscar 2020 de Melhor Filme Internacional.
Nele, Ly atualiza a obra de Hugo ao tratar dos conflitos sociais mais invisibilizados da França contemporânea. Para tanto, a produção apresenta as contradições de um sistema (social, econômico e político) desgastado ao extremo e cheio de nuances; o que a faz dialogar, inclusive, com a ótima safra de filmes lançados em 2019 que também procuram imaginar o momento de explosão das tensões entre oprimidos e opressores – Bacurau e Parasita, por exemplo.
Logo no início da projeção, uma sequência filmada pela Champs-Élysées, uma das principais avenidas de Paris, segue as celebrações de rua que acontecem num dia de jogo da seleção francesa de futebol; quando todas as pessoas parecem fazer parte de uma só nação. Depois, o diretor desloca seu espaço de interesse para as ruas do subúrbio da cidade, onde se concentram os párias e a violência estatal.
Passamos a acompanhar, então, a chegada do policial Stéphane (Damien Bonnard) ao esquadrão anti-crimes local. Transferido do interior e colocado no mesmo time de Chris (Alexis Manenti) e Gwada (Djibril Zonga), o personagem funciona como elemento condutor da narrativa. É a partir de sua nova rotina de trabalho que Os Miseráveis versão século XXI desenvolve seu conflito central: juventude vs. repressão.
PARA AS MARGENS, A LEI DO MEDO
Ladj Ly nasceu e ainda vive nos subúrbios de Paris. Cresceu sendo testemunha de abusos policiais e aprendeu a registrá-los. Não é de se estranhar, portanto, que tais experiências pessoais tenham servido de motivação para a realização de um filme disposto a expor como um rompante a face midiaticamente mais oculta da “exemplar democracia francesa”.
Ali, nas margens, a principal lei vigente é a do medo; e a relação entre Estado e povo se dá, acima de tudo, via violência, abusos de autoridade e toda sorte de arbitrariedades. Nesse contexto, Chris e Gwada, deslumbrados por alguma mínima – e falsa – sensação de poder, representam peças-chave de uma ampla estrutura de controle social pautada pela barbárie. No dia a dia, são eles os encarregados do embate direto com a população.
Como Javert, no clássico de Victor Hugo, os dois policiais mostram-se obcecados e dispostos a tudo para manter o que entendem por ordem – Chris beirando o fascismo de um branco mediano; e Gwada, homem negro que cresceu naquele lugar, tentando se diferenciar dos que se perderam.
Entretanto, para Stéphane e seu olhar “estrangeiro”, ainda não absorvido pela desumanização da rotina policial no subúrbio de uma metrópole, cabe a função de mediador. A certa altura, porém, tal função, já sempre bastante frágil, extingue-se por falta completa de sentido.
Na crescente de fôlego da entrada do terceiro ato, Os Miseráveis apresenta uma situação limite de confronto, regulada pelo descontentamento do futuro ameaçado e pelas rachaduras de um sistema fadado ao colapso – situação essa que em alguma medida faz lembrar das barricadas do livro de Hugo.
UM FILME IMPETUOSO
O fervor com que Ly se dedica a representar uma realidade tão próxima à sua é certamente impactante. Usando uma câmera quase documental ele procura reproduzir com proximidade as complexas dinâmicas do subúrbio; sempre através da rotina policial, única presença institucional na região. Desse modo, são desenvolvidos elementos sociais constituintes daquele espaço físico: diferenças étnicas e religiosas, franceses brancos e filhos de imigrantes, poderes oficiais e paralelos, pobreza, violência e sobrevivência.
Por outro lado, e apesar da abordagem temática irretocável e de relevância internacional, o longa conta com algumas excessos que podem soar previsíveis ou repetitivos. Não raras vezes, principalmente em relação ao comportamento de Chris, a trama causa mais incômodo pela forma como é conduzida (na limite entre o que separa a denúncia de uma leitura sobre bem e mal) do que por seu conteúdo delicado.
Claro que nada disso ofusca a potência da atmosfera atordoante e imersiva do longa ou, principalmente, de seu tremendo desfecho. Também não anula os méritos de um filme que se preocupa mais em denunciar a miséria do modus operandi do sistema vigente do que em explorar dramaticamente misérias sociais e humanas. Então, embora vez ou outra descambe para a inquietação exagerada, Os Miseráveis acaba sendo uma boa obra de estreia, além de um trabalho que diz muito sobre as intenções autorais de seu realizador.
Trailer:
Ficha Técnica:
Direção: Ladj Ly
Duração: 1h42
País: França
Ano: 2019
Elenco: Damien Bonnard, Alexis Manenti, Djebril Zonga
Gênero: Drama
Distribuição: Diamond Films
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