Acessível, urgente e emocionante. É assim que Relatos do Front, documentário nacional que estreia nos cinemas na próxima quinta-feira (20), pode ser taxado. Ao contrário disso, no entanto, o filme de Renato Martins (Geraldinos) é construído a partir de um material tão rico, e apresenta personagens tão interessantes – ou melhor, fora de quaisquer estereótipos sociais –, que defini-lo em poucas palavras é de um simplismo cruel.
Na produção, os entrevistados podem surpreender um espectador desacostumado com o debate proposto pelo diretor, já que muitas daquelas figuras fogem dos padrões das comunidades a que pertencem; um, o policial autocrítico e pacifista; outro, o criminoso altamente consciente de si. Dessa forma, delineiam-se os relatos de vítimas de uma guerra secular.
A contextualização histórica de Relatos do Front é imprescindível para a fluidez da narrativa de Martins. Aspectos indissociáveis da sociedade brasileira – como o racismo institucional e secular; o crescimento urbano desenfreado; o desenvolvimento das periferias; a atuação da Polícia Militar; o período de ditadura (1964 – 1985), e o desprezo do Estado para com as raízes da problemática social – são a base para a argumentação do longa-metragem; que justifica-se através da fala de cientistas sociais, de imagens de apoio e de filmagens de violência real.
A certa altura, uma especialista comenta sobre como a questão da falsa segurança pública é construída para o – e pelo – senso comum da sociedade. Tudo começa com o medo da violência, que é alimentado por uma grande mídia alarmista e por medidas governamentais de incentivo ao confronto. Depois, esse medo leva a um sentimento de raiva que, consequentemente, intensifica-se em um ódio contra qualquer coisa que possa soar ameaçadora; ou melhor, ao que não nos é familiar (como classes ou ambientes diferentes). E, por último, o ciclo de violência urbana encerra-se através de uma reação ainda mais violenta, por todas as partes.
Então, como romper com isso, uma vez que o próprio Estado lida com tais hábitos de modo a incentivá-los, um a um? Esse questionamento é um dos principais do documentário, e leva-nos a refletir sobre o que é discutido durante os quase cem minutos de filme.
Além disso, outro ponto, proposto por um dos entrevistados, relaciona-se com a falta de iniciativa do governo para negociar com a criminalidade. Por que não firmar acordos de trégua com pessoas e facções à margem da lei? Se isso garantisse, de algum modo, a segurança concreta, por que não se optaria por ela, ao invés de praticar-se medidas imediatistas e ineficazes? Seria, isto, por causa de uma falsa ideia de moralidade?
Enquanto a única diferença entre a Polícia Militar e os bandidos consistir no aval do Estado para matar, ou enquanto lidar-se com as mortes de policiais e de civis como meras consequências dessa guerra, sem pesar os riscos a longo prazo de uma cultura de violência, é certo que os índices de homicídios – principalmente os da população pobre e preta – continuarão a crescer.
Tanto pessoas totalmente inocentes – fora de ambos os lados do confronto – quanto jovens envolvidos obrigatoriamente com o crime, ou até mesmo policiais de vida modesta e que sustentam as suas famílias, todo e qualquer cidadão pode tornar-se vítima do descaso generalizado para com a segurança (palpável) dos brasileiros. E, assim, a garantia da mais simples proteção individual, como a contra assaltos, torna-se inalcançável.
Apesar de ser uma obra artística, o documentário também apropria-se de um conteúdo jornalístico – não tanto pela temática, mas, sim, pelo registro de confrontos armados. Um exemplo disso é a produção começar com cenas bastante tristes de um civil ferido por disparos de arma de fogo, sendo carregado por demais presentes. Posteriormente, o longa modifica o seu tom e ganha um caráter mais didático. Assim, o diretor dosa a grande quantidade de material a ser explorado e abre espaço para uma montagem tradicional de filmes do gênero (com entrevistas intercaladas e outras imagens de apoio).
Mais um aspecto ressaltado na obra é a relevância de casos de assassinatos de grande repercussão midiática. O homicídio de Maria Eduarda, uma adolescente de 13 anos que foi atingida por bala perdida dentro da própria escola, na Zona Norte do Rio de Janeiro, em 2017, é uma das trágicas ocorrências mencionadas no documentário. Entrevistas com alguns de seus familiares aparecem ao longo do filme, tal como com diferentes parentes de vítimas de violência urbana.
Dito isso, é importante apontar o cuidado que a direção de Martins tem na escolha dos relatos – cuidado, este, ao evitar um possível sensacionalismo ou apelações dramáticas da narrativa. Logo, se os depoimentos estão presentes no longa-metragem, é por uma necessidade de dar voz a quem mais sofre com o ciclo contínuo de violência: os cidadãos enlutados pela perda de entes queridos.
Graças à tamanha abrangência histórica e ao entrelaçamento com condições sociais recentes, Relatos do Front pode ser comparado com outro documentário nacional: Ônibus 174 (2002), de José Padilha e Felipe Lacerda. Neste último, o sequestro de um ônibus na Zona Sul do Rio de Janeiro, no ano de 2000, é dissecado pelos diretores, tal como a vida do sequestrador Sandro Barbosa do Nascimento e a interferência direta da mídia jornalística no caso.
Ambas as produções cinematográficas gozam de linguagem totalmente acessível ao grande público. Talvez, por isso, Ônibus 174 seja tão aclamado, e Relatos do Front mostre-se tão bem-sucedido – e preciso – no que propõe. De qualquer modo, os dezessete anos que separam os dois títulos brasileiros dizem muito sobre a lógica de violência urbana ininterrupta em nosso país.
Mesmo que algum tempo tenha se passado desde o início deste século, parece que nada realmente mudou. E, talvez, não tenha, de fato. Daí, pode-se compreender com clareza o quão urgente é a feitura de documentários como Relatos; que representam um grito sufocado daqueles que sangram por guerras sem sentido.
Ficha técnica
Direção: Renato Martins
Duração: 1h35
País: Brasil
Ano: 2019
Elenco: atores desconhecidos
Gênero: Documentário
Distribuição: ArtHouse
COMENTÁRIOS