ATENÇÃO: Este texto contém spoilers!
Lançada em 2020 no México, a versão série de Rubí chegou em junho deste ano ao Brasil, ficando algumas semanas entre as 10 produções mais assistidas do Globoplay. A produção é o terceiro título entregue pelo Fábrica de Sonhos, projeto da Televisa que adapta para o formato de séries as tramas de suas novelas mais clássicas.
A história da jovem Rubí, a anti-heroína ambiciosa que seduz homens para ascender socialmente, sendo capaz até de roubar o noivo da melhor amiga, foi publicada pela primeira vez em quadrinhos românticos concebidos pela cartunista mexicana Yolanda Vargas Dulché, em 1963. Desde então, Rubí ganhou algumas adaptações para o audiovisual. A mais célebre delas, sem dúvidas, foi a novela lançada em 2004 pela Televisa e protagonizada por Bárbara Mori.
Agora adaptada para uma série de 26 episódios, com Camila Sodi no papel principal, Rubí carrega novos contornos. Para começar, a comparação entre as atrizes protagonistas se torna inevitável. Sodi é competente e mostra desenvoltura, mas Mori representa um marco da femme fatale nas novelas mexicanas das últimas decadas, e por isso deve custar ao espectador desapegar da nostalgia – o que não é de fato um problema.
Também chama atenção logo de cara a mudança de música tema. Icônica na novela de 2004, La Descarada, de Reyli Barba, descreve justamente uma mulher que abdica de um grande amor em favor da riqueza, com ênfase em seu caráter duvidoso e a partir do ponto de vista do homem abandonado. Já na série, Rubí tem A quién le importa, de Alaska e Dinarama, na voz de Camila Sodi, como trilha. Na música, tal como no desenrolar da nova trama, o ponto de vista é da protagonista, alguém que não pensa em mudar sua forma de ser para agradar a quem lhe aponta o dedo.
Outras diferenças de destaque são a sexualidade do melhor amigo de Rubí, Loreto (Alfredo Gatica), que agora é tratada com muito mais naturalidade, e as tentativas de dispersão dos maniqueísmos, como a nova personalidade de Maribel (Jacqueline Bracamontes, em 2004; Kimberly Dos Ramos, em 2020), a – não mais tão – mocinha vítima das tramoias da “ex-descarada”. Enquanto Bracamontes interpretava uma jovem ingênua, bondosa e chorosa, Ramos apresenta uma mimada muito mais cheia de atitude. Alejandro Cárdenas (José Ron) também perde status no quesito virtudes de mocinho, ao passo em que Rubí e o grande vilão contam em alguma medida com o meio de onde vieram como “explicação” para suas personalidades.
OBSESSÕES
Agora ambientado em 2040, o enredo tem como arco inédito uma longa entrevista concedida por uma Rubí um pouco mais velha, muito mais sóbria e já com o rosto desfigurado à repórter Carla Rangel (Ela Velden). Reclusa em uma mansão afastada da cidade, a outrora bela, expansiva e magnética Rubí conta à jornalista, com riqueza de detalhes e sem muitos arrependimentos, acontecimentos de 20 anos atrás, introduzindo desse modo os flashbacks de sua trajetória, da ascensão ao isolamento. Do momento em que decidiu seduzir o milionário arquiteto Héctor (Rodrigo Guirao Díaz), noivo de Maribel, abdicando de seu amor pelo médico Alejandro e tornando-se famosa, até o momento em que terminou escrava do descarrilamento de suas escolhas.
É assim que conhecemos Rubí por ela mesma, e é assim que o roteiro tenta humanizar a protagonista. Em sua nova versão, Rubí ainda é uma mulher forjada pelo ego e pelo medo da pobreza, obcecada pelo poder e pela possibilidade de oferecer um futuro melhor à mãe e à sobrinha, ambiciosa, inescrupulosa e não raras vezes cruel. Mas, ao longo da temporada, ganham enfoque suas nuances de personalidade, marcadas especialmente pelas reações às violências que atravessam seu caminho desde quando vivia numa vila pobre.
Nesse sentido, o triângulo amoroso com Alejandro e Héctor acaba em segundo plano. No centro do palco, as obsessões. Rubí usa cada homem e situação a seu bel-prazer, mas não consegue controlar todas as variantes do jogo perigoso que inicia – principalmente por ser uma mulher. Como efeito colateral, ela se torna vítima do poder que tanto almejava, objeto de fixação dos homens com quem se relaciona. Héctor, aliás, vai além da violência doméstica já presente na novela, transformando-se num completo psicopata – antagonista conveniente para o desenrolar do tipo de oportunidade de redenção (ou novo desfecho) que o roteiro decide oferecer à protagonista.
Para completar o emaranhado de relações disfuncionais, Carla também parece obcecada pelos segredos de sua entrevistada.
OS DEGRAUS
É irregular a nova versão de Rubí. Equilibrando os pratos entre estabelecer diálogos com o espectador contemporâneo e ser fiel aos traços gerais da novela de 2004, a série se mostra repetitiva e desajeitada.
A essência da trama que conhecemos como Rubí está ali, com menor duração e subtramas compactadas. No entanto, o conflito romântico da vez não diz mais respeito exatamente ao dilema da protagonista entre viver com o marido rico ou assumir seu verdadeiro amor pelo sujeito pobre. Agora, Rubí tem claro seu modus operandi. Então, primeiro Alejandro é abandonado por ser um doutor classe média. Em seguida, Héctor é trocado pelo estilista Lucas Fuentes Morán (Marcus Ornellas), que é trocado pelo príncipe da Espanha (Rubén Sanz).
Cada homem representa um degrau na escalada da protagonista rumo ao que imagina ser o sucesso. E também um novo problema a ser superado. Na prática, são repetições narrativas que envolvem os mesmos esquemas de conflitos. Apenas no fim da escalada, depois de alguns tombos e recomeços, acontece a reviravolta que rompe com a já cansativa ciclicidade do enredo: em vez de terminar desfigurada, solitária e amarga, Rubí enfrenta o purgatório imposto por Héctor para alcançar a liberdade, botando de volta o vestido e o batom vermelho.
O problema é que, além de insistente e pouco criativo, o desenrolar dos conflitos leva a um vilão clichê completamente desvairado e com passado trágico e a uma anti-heroína que tem como desfecho a versão mais descuidada possível de “empoderamento feminino”. Ou seja: gasta-se mais tempo tentando justificar personalidades do que de fato superando armadilhas de bem e mal.
Convenhamos, parece realmente pertinente fazer a protagonista comer o pão que o diabo amassou nas mãos de um ex-marido psicopata para finalmente se redimir (não exatamente por mudar, mas por ter pago suas dívidas com sofrimento) e só assim terminar “empoderada”, indo embora sozinha com a herança dele? Se tivesse outra temporada à disposição, essa Rubí se contentaria em seguir sozinha ou entraria naquele avião e iria atrás de um próximo degrau? Depois do príncipe, talvez um bilionário de foguete?
A FÁBRICA FORDISTA DE SONHOS
Existe uma fórmula de produção em massa em andamento no Fábrica de Sonhos. Na linha de montagem do projeto, os conflitos das novelas são simplesmente replicados, às vezes tangenciando um ou outro gênero além do drama, enquanto algumas muletas temáticas (violência de gênero e empoderamento feminino, no caso de Rubí) são usadas para justificar a releitura. Como tempero extra, uma certa mania de grandeza desloca as histórias para lugares completamente dispensáveis.
Na adaptação de A Usurpadora, por exemplo, os conflitos de relacionamento provocados pelo “gêmea boa versus gêmea má” são floreados pela decisão de fazer de Paola a primeira-dama mexicana e de Paulina, uma ativista social. Já em Rubí, até a monarquia espanhola entrou na dança.
Os resultados são medianos, e deixam transparecer que, na realidade, tais lançamentos não passam de uma investida comercial sem fins criativos, cujo maior propósito é conquistar o público das plataformas de streaming sugando a popularidade das clássicas telenovelas da casa.
Daí o principal impasse do Fábrica de Sonhos: é difícil revender clássicos. As novas produções não têm realmente empolgado os fãs das novelas dos anos 1990/2000 e nem a audiência que procura por um bom e atual dramalhão. Em vez disso, viram caricaturas contemporâneas do que um dia significaram as novelas a que se referem.
Falta autenticidade ao Fabrica de Sonhos. Falta intenção de deixar de lado as receitas fáceis usadas no processo de produção e olhar com carinho para o potencial de suas grandes personagens – a própria Rubí, com sua língua afiada, renderia diálogos menos óbvios num roteiro perspicaz. Falta até mesmo mostrar boas performances de melodrama.
Limitada pelos termos de um projeto comercial que usa novelas de sucesso como moldes grosseiros em vez de como inspirações, então, Rubí termina por se manter em pé graças à entrega de Camila Sodi, ao protagonismo da perspectiva da personagem-título e ao arco de 2040, com a entrevista que episódio a episódio joga com a curiosidade do público sobre as diferenças da nova versão em relação à anterior, garantindo engajamento por toda a temporada – a despeito ainda da precária caracterização de tecnologias e personagens na passagem de tempo da obra e do flerte com o terror, que é abandonado no meio do caminho.
Ficha técnica
Direção: Pavel Vazquez, Pepe Castro, Carlos Cock
País: México
Ano: 2020
Elenco: Camila Sodi, José Ron, Rodrigo Guirao Díaz, Kimberly Dos Ramos, Ela Velden, Alfredo Gatica
Gênero: Drama
Distribuição: GloboPlay
Essa Rubi é uma novela ou série que está passando no Globo play??