Otis Milburn (Asa Butterfield) é o típico adolescente socialmente retraído que faz de tudo para passar despercebido na escola, contando com a parceria de um único e melhor amigo, Eric (Ncuti Gatwa). Ele vive com a mãe, Jean (Gillian Anderson), uma terapeuta sexual. Aos 16 anos, Otis vivencia as contradições de ser um jovem tímido e sexualmente inexperiente mesmo tendo uma mãe “descolada” e aparentemente bem-resolvida.
Um dia, por acaso, o caminho de Otis se cruza com o de Maeve (Emma Mackey), uma colega de classe rejeitada e considerada problemática. Otis quer agradar Maeve, e Maeve precisa de dinheiro. Juntos, eles decidem montar sua própria clínica de saúde sexual – usando os conhecimentos teóricos de Otis, conquistados graças a sua convivência com a Jean -, para ajudar outros alunos do colégio com suas dúvidas e problemas sexuais.
Essa é a base da trama britânica Sex Education (Educação Sexual, em português), série original Netflix que chegou ao catálogo na última sexta-feira (11). Aos desavisados, a produção pode soar como mais um título adolescente qualquer da plataforma. Aos olhares atentos, entretanto, Sex Education se mostra como um belo conteúdo sobre as dores e as delícias de ser adolescente – e sobre como a adolescência pode manifestar um leque infindável de conflitos que variam de acordo com o seu contexto pessoal e social.
A estreia da série cai como uma luva como contranarrativa ao Brasil dos últimos tempos, onde acredita-se que educação sexual acaba incentivando a promiscuidade entre os jovens. Ao contrário do que pode parecer por conta de seus primeiros minutos, Sex Education não se trata de uma série vazia sobre jovens fazendo sexo. A produção aborda justamente a importância da educação sexual para os mais variados âmbitos da vida de qualquer pessoa.
Para isso, uma grande diversidade de personagens e conflitos são desenvolvidos ao longo de oito episódios. A narrativa toca, com humor funcional e responsável, em temas como conflitos familiares, maternidade, relacionamentos interraciais, lésbicos e homoafetivos, identidades de gênero e variedades de etnias, classes sociais e religiões.
Otis, por exemplo, teve uma criação muito liberal, com mãe presente, situação financeira segura e informação suficiente para abdicar de masculinidades tóxicas, apesar de ser um jovem hétero e branco, cheio de privilégios. Eric, por sua vez, é um garoto negro e assumidamente homossexual; único filho homem de uma família religiosa de imigrantes. Por gostar de se montar (usar maquiagem, roupas e adereços considerados femininos), Eric preocupa o pai, que tem medo de que o filho seja agredido na rua. Já Maeve é uma garota solitária. Fruto de uma família disfuncional, ela se vira sozinha para sobreviver sem suporte financeiro ou emocional, encontrando nos livros e na teoria feminista o seu refúgio.
Aos poucos, as dinâmicas escolares e familiares do trio protagonista são desenvolvidas e passamos a conhecer a complexidade de outros núcleos. Chega a ser impressionante como, apesar da grande quantidade de personagens, nenhum arco está à toa na trama, sendo todos eles bem aproveitados. Cada adolescente, com seu contexto social, de classe, de personalidade e familiar, serve para chamar atenção para algum aspecto importante do que é viver num mundo que além de diverso, é complexo e desafiador.
Sex Education funciona, então, como um chamado à empatia. De repente, no meio de um diálogo que prometia ser aleatório ou simplesmente engraçadinho, esbarramos em boas oportunidade para aprender sobre respeitar e prestar atenção no outro. Sem falsos moralismos, e no meio de uma comédia carismática, a série traça um retrato do que é ser adolescente hoje, num mundo em que conservadorismo e pautas identitárias travam constantes embates.
Claro que a obra recorre a algumas convenções do gênero adolescente (romances, valentões, patricinhas, rebeldes, nerds, etc), mas um de seus principais trunfos – além das já mencionadas qualidade narrativa, diversidade em variados níveis, leveza e bom humor- , é demonstrar, com clareza, que fingir que um problema não existe não faz com que ele desapareça.
Fingir que educação sexual não é importante, portanto, não faz com que gravidezes indesejadas, doenças sexualmente transmissíveis, preconceitos, violências de gênero, abortos, vulnerabilidades sociais, problemas de autoestima, relacionamentos abusivos (entre amigos, família, namorados, etc), machismo, homofobia, racismo e tantas outras coisas deixem de existir.
Apesar de os oitos episódios serem sequenciados e fluírem uma única história, cada um deles tem um tema como pano de fundo. Aqui, vale destacar o episódio que trata da questão do aborto, expondo, com muita humanidade, a importância do aborto seguro e descriminalizado.
Nele vemos diferentes motivos que levam mulheres a realizarem abortos, vemos como tratamento médico minimamente digno faz toda a diferença no processo; como um não-julgamento pode tornar as coisas muito mais fáceis e como cada mulher, de toda parte do mundo, deveria ter a chance de decidir sobre seu próprio destino – e corpo – com segurança.
Depois, também há um episódio importante sobre vazamentos de fotos íntimas na internet. Em ambos, destacam-se cenas de sororidade (irmandade entre mulheres) muito emocionantes. Esse é outro mérito de Educação Sexual: ensinar que mulheres não são rivais, são companheiras.
No fim das contas, a nova série original da Netflix fala sobre ser humano. Sobre se conhecer e perceber no mundo, perceber o outro e notar que o planeta não gira em nosso entorno. Somos muitos, somos diversos, precisamos conviver. O que parece completamente correto para sua vida, pode não ser o melhor para outra pessoa. O conservadorismo é medroso. Tentar fazê-lo vingar como verdade universal é como ter medo de bichos papões e se esconder debaixo do cobertor, esperando que eles vão embora sem puxar o seu pé. É ter medo de monstros que não existem e tentar impor esses medos às outras pessoas.
Sex Education faz questão de mostrar que a realidade está aí, às vezes sendo cruel, mas sempre apontando para o norte de que é possível resolver muitos conflitos com afetividade. Pode ser que todas as cenas de sexo barrem qualquer interesse da família tradicional brasileira pela produção, mas uma coisa é certa: esse tipo de entretenimento engajado, leve, cativante e de uma sensibilidade ímpar representa exatamente o tipo de narrativa contemporânea que precisamos para tentar driblar os entraves do discurso conservador na vida coletiva.
Assista ao trailer:
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Ficha técnica :
Direção: Laurie Nun
País: Reino Unido
Ano: 2019
Elenco: Ncuti Gatwa, Asa Butterfield, Emma Mackey, Gillian Anderson
Gênero: Comédia
Distribuição: Netflix
Sensacional! Tenho 58 anos e esta é a primeira série onde a adolescência e seus conflitos é tratada com seriedade e dignidade. Deveria ser recomendado nas Escolas do Brasil!