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[Estreia] Você Nunca Esteve Realmente Aqui conta com atuação irretocável de Joaquin Phoenix
Frio, nada gráfico e de poucos diálogos; é assim que o novo filme de Lynne Ramsay, Você Nunca Esteve Realmente Aqui, apresenta-se ao espectador de início. O longa-metragem, que estreia nesta quinta (09) nos cinemas, segue a cartilha das técnicas aplicadas por Ramsay em seu último sucesso – o aterrorizante Precisamos Falar Sobre o Kevin.
Interrupções musicais no meio de cenas dramáticas (e nada expositivas); personagens – propositalmente – inexpressivos e em closes estranhos, e uma direção claramente experimental, é assim que Ramsay explora, mais do que a história de um veterano de guerra, a personalidade, em si, do protagonista Joe (Joaquin Phoenix).
O misterioso homem resgata mulheres escravizadas sexualmente, agindo de modo violento somente quando calculado – e em momentos em que não há absolutamente nada a perder. Depois de um trabalho mal-sucedido, o relativo autocontrole de Joe cede lugar a um objetivo muito específico, que implica em cumprir sua missão com a dignidade que lhe cabe.
Joe é alguém cujos valores estão unicamente atrelados aos traumas de sua vida. Há vários flashes de seu passado e que dão grande profundidade ao personagem; principalmente aqueles em que aparece como um menino assustado, com uma relação delicada com a mãe e que pratica autoasfixia. O hábito nocivo, aliás, perdura até a idade adulta de Joe, quando interpretado por Phoenix.
Com cenas de ação não-convencionais, bastante verossímeis e pouco glamourosas, Você Nunca Esteve Realmente Aqui surpreende pelo modo cru como uma simples história pode ser contada. Imagine O Profissional (de Luc Besson, 2004), com um apelo muito mais perturbador – e não pela relação entre os personagens, mas sim pela forma como a direção conduz o longa. Se conseguir imaginar algo próximo a isso, talvez preveja o que assistirá no filme de Ramsay.
A montagem, o roteiro e a atuação de Phoenix são, realmente, irretocáveis; tanto são que, as duas últimas, levaram prêmios no Festival de Cannes. A qualidade técnica da produção, toda a sua execução, cumpre com o esperado (diante da filmografia de Ramsay). Você Nunca Esteve Realmente Aqui mostra que as habilidades da diretora estão em constante evolução.
Ficha técnica
Direção: Lynne Ramsay
Duração: 1h35
País: Reino Unido, França, EUA
Ano: 2017
Elenco: Joaquin Phoenix, Ekaterina Samsonov, John Doman, Judith Anna Roberts
Gênero: Drama, Suspense
Distribuição: Supo Mungam Films
Por que Persépolis é uma obra cada vez mais atual
A animação francesa Persépolis – baseada nos quadrinhos autobiográficos e homônimos de Marjane Satrapi –, estreou no Festival de Cannes de 2007 e, tão logo, despertou um crescente interesse internacional. No festival, o filme recebeu o prêmio do júri; já no Oscar do ano seguinte, foi indicado na categoria de Melhor Animação, o que contribuiu para a fama relativamente popular do longa-metragem.
Escrito e dirigido pela própria Satrapi, ao lado de Vincent Paronnaud, a produção conta os momentos mais marcantes da infância e da juventude da iraniana Marjane. Em meio às atribulações do instável e violento governo do Irã setentista, a menina luta para manter-se bem e vivenciar tudo aquilo que fora restringido ao sexo masculino. Uma feminista “de coração” desde sempre, a protagonista da vida real vem de uma família de idealistas comunistas, com figuras extremamente interessantes e corajosas.
Ainda uma criança que sonha em se tornar vidente, Marjane perde seu querido tio, executado como inimigo do Estado. Com a passagem dos anos e o aumento das repressões (principalmente de gênero), a adolescente rebelde, que passa a curtir punk e, depois, heavy metal ocidental, entra em conflito com suas condições de vida limitadas e, como medida de proteção por parte de seus pais, é enviada à Áustria para terminar os estudos.
Na nova realidade, a jovem tem de lidar com uma comunicação diferenciada, novas companhias, outros hábitos alimentares e modos de enxergar a vida, em geral. O início é difícil, o meio é um pouco mais fácil e o final de temporada, em terras austríacas, é ainda mais cruel do que seu começo. Pulando de casa em casa e, posteriormente, vivendo nas ruas geladas do país europeu, Marjane retorna à casa dos pais, no Irã, após anos de “exílio”.
A animação em preto em branco é – infelizmente – cada vez mais atual no cenário contemporâneo. Isso, porque as guerras no Oriente Médio, a crise dos refugiados, a chamada islamofobia (medo ou aversão à comunidade muçulmana) e as discussões sobre feminismo são temas atualíssimos. Marjane, além de forte mulher, empoderada e de enorme consciência social, representa o que há de mais humano em um cidadão.
A honestidade do texto de Satrapi é admirável e, por mais duro que seja acompanhar a vida nada fácil da personagem, sentimos uma grande identificação com momentos pontuais de sua narração. Percebemos, a certa altura, que Marjane poderia ser qualquer garota, de quaisquer lugares do mundo. E, quanto mais bradamos por nosso direito de equidade social com o sexo masculino, mais nos aproximamos de jovens como a protagonista de Persépolis.
Por mais simples que seu traço seja, por mais única que sua história pareça ser e por melhor que seu destino tenha sido no futuro (nosso atual presente), a juventude de Marjane é um verdadeiro ensinamento sobre ética e a idealização de uma sociedade mais justa. Se você ainda não assistiu a Persépolis, dê uma chance e contemple essa breve – e intensa – história do início de uma vida.
[Estreia] A Noite Devorou o Mundo subverte o terror de zumbis
Imagine fazer uma visita ao apartamento de sua ex-namorada e, esperando encontrá-la sozinha, deparar-se com uma festa de arromba e um novo parceiro. Agora, visualize terminar sua noite isolado em um quarto entulhado de coisas. Para completar, idealize adormecer nesse mesmo local e, quando acordar…dar por si em meio a um apocalipse zumbi. Quem nunca, não é mesmo?
A Noite Devorou o Mundo, thriller francês de Dominique Rocher, estreia hoje (05) nos cinemas e surpreende pela consistência narrativa, tal como pelo uso de elementos raros em produções do gênero. Para começo de conversa, os zumbis do filme não emitem sons vocálicos – ao contrário de praticamente todos os títulos protagonizados por mortos-vivos. Mais lentos e menos inteligentes do que em outras representações, os zumbis de A Noite se tornam selvagens somente quando reconhecem uma estridente presença humana.
A partir daí, o protagonista Sam (Anders Danielsen Lie), ilhado e solitário no prédio de sua ex, luta contra a penetração da nova espécie na recente morada – e também contra a inevitabilidade da produção de ruídos de alta frequência. Mas, há um pequeno detalhe que rege a vida do personagem que atrapalha suas condições, e ao qual ele tem a felicidade de ainda ter acesso: a música.
No início do filme, Sam busca por gravações de algumas de suas composições. Ironicamente, o que o leva até o edifício, e onde permanece por tempo considerável, é a mesma coisa que o repele do exterior da própria construção, no final das contas. O protagonista não está disposto a abrir mão de uma das pouquíssimas coisas que sobraram após o apocalipse; considerando todos os suprimentos e (possíveis) armas encontradas nos apartamentos parisienses.
A Noite Devorou o Mundo é um longa-metragem bastante silencioso. Há poucos momentos de trilha sonora e, principalmente na primeira metade, cada barulhinho provoca um espasmo no espectador (veja mais sobre filmes de terror aqui). Não sabemos o que ocasionou o “fim do mundo” daquele universo, mas, a realidade é que isso não importa dentro da lógica do filme. A solidão de Sam é tão bem construída e (surpreendentemente) explorada – e em um filme de zumbis! – que até mesmo os monstros vilanescos ficam para o background. E, diga-se de passagem, eles não ficam nada ofuscados por causa disso.
Com o tempo, Sam se vê tão sozinho que até mesmo um morto-vivo preso no elevador serve como ouvinte. Aparentemente, todos ao redor do humano morreram ou viraram zumbis; logo, os monstros servem quase que como uma alegoria do isolamento físico e psicológico do protagonista. Sabe aquela ideia de que, para se ter certeza de que não está louco, é preciso que os outros o digam? Por mais cruel que isso possa parecer, um ser humano totalmente privado de comunicação, e enquanto permanecer como tal, não pode comprovar sua sanidade mental.
A Noite Devorou o Mundo é uma produção de técnicas simples, sem grandes efeitos especiais ou narrativas muito complexas. No entanto, a sutileza através da qual trabalha com temas aprofundados é o que há de mais notável no filme. Assim, o longa se prova muito mais do que um terror de zumbis.
Ficha técnica
Ano: 2018
Duração: 1h34
Direção: Dominique Rocher
Elenco:
Anders Danielsen Lie
Estreia: ‘Safári’, um documentário violento e espetacular (em todos os sentidos)
Animais caçados, esfolados, brancos racistas e neocolonialismo na África. Junte tudo isso a uma crueza horripilante e terá Safári, documentário austríaco que estreia nesta quinta (14). Dirigido por Ulrich Seidl – de mesma nacionalidade de seu longa-metragem –, o filme foi exibido pela primeira vez no Festival de Veneza de 2016, despertando a repulsa e a inconformidade de espectadores desde então.
O que é mostrado em Safári choca não somente pela frieza por de trás das câmeras, mas principalmente pela profundidade do que há em suas imagens. Portanto, se você se emociona facilmente com maus-tratos a animais, se se impressiona com sangue e exposição da parte interna de seus corpos e, ainda mais, se lida muito mal com a exibição de discursos racistas, é recomendável que não assista ao documentário.
(Trailer oficial – ATENÇÃO! Imagens fortes):
(Fonte: CartaCapital / YouTube)
A primeira cena do longa-metragem já denuncia o grande incômodo que será assisti-lo; um homem toca um instrumento de sopro continuamente, e durante alguns minutos. Em seguida, um casal de caçadores, de europeus idosos, descansa tranquilamente sob a luz do sol. Enquanto esperam o protetor solar secar, repassam os preços de cada animal no mercado de caça.
O enquadramento, majoritariamente em plano americano, revela indivíduos quase estáticos; ora orgulhosos de seus troféus empalhados, ora inexpressivos (este último caso, quando aplicado aos nativos africanos). A cada barulho de tiro – assustador através das poderosas caixas de som do cinema –, percebemos a violência abafada pelos próprios caçadores. Na Namíbia, local da reserva de caça controlada, esse tipo de prática é totalmente legal.
Mesmo que as famílias, de pessoas brancas, europeias, de “posses” e tantos outros privilégios, encontrem resistência fora dos limites da reserva, cada tiro de espingarda e animal morto são tolerados pela Justiça nacional. Depois de entender que acompanharemos, durante alguns minutos, um show de horrores e assassinatos legalizados, nos acostumamos, aos poucos, com a proposta do diretor: a de documentar coisas piores, à medida em que o longa avança.
Assim, o primeiro bicho é morto: um gnu, idoso e que caminha apenas alguns metros após ser atingido. Os caçadores se cumprimentam, parabenizam uns aos outros e limpam os chifres do cadáver com uma garrafa d’água. Depois, tiram uma fotografia, exibindo seu troféu.
Mais para a frente, chega a hora de uma zebra morrer. Um jovem de vinte e poucos anos, um dos membros da família austríaca de Safári, atira na zebra; que, assim como o gnu, morre rapidamente. Em seguida, os nativos negros são vistos esfolando o corpo do animal. Suas patas são cerradas e sua pele é lavada.
Por pior que seja, nada disso se compara à sequência da caça de uma girafa. A mãe da família de caçadores, uma mulher na casa dos 50 anos, aproxima-se de um grupo de girafas e dá o tiro certeiro. A vítima caminha alguns metros; mas não morre instantaneamente. O animal, lutando contra a própria dor da bala dentro de si, tenta levantar.
Os demais integrantes do grupo, as outras girafas, assistem à cena fixamente. Já os caçadores, assustados, afastam-se e aguardam. A girafa tenta levantar uma, duas, três vezes…até desfalecer por completo. Os filhos do casal de humanos se aproximam, deslumbrados pela conquista de mais um troféu.
O corpo do animal é posto, com algum esforço, em uma caminhonete, que parte para o local de esfolamento. Daí em diante, as imagens mostradas, espetacularizadas, de certa forma, encontram o ápice da exposição. Aparentemente desnecessária, sentimos a intenção de Seidl em nos provocar nojo, repulsa, e de associar todo e qualquer sangue mostrado às atitudes injustificáveis dos maiores beneficiados do neocolonialismo: os brancos europeus.
Com esse gancho,
um novo tema – ou, talvez, o principal do documentário – faz muito sentido quando abordado de forma direta
Estreia: ‘1945’ mostra por que todos devemos dar uma chance ao preto e branco
Filme húngaro, em preto e branco e sobre uma comunidade que se recupera dos horrores da Segunda Guerra Mundial. Aos olhos mais acostumados a filmes divertidos, coloridos e hollywoodianos, 1945 é mesmo pouco atraente. Dirigido por Ferenc Török, o longa-metragem estreia nesta quinta (05), e explora, em sua narrativa crua e acessível, as consequências de uma decisão individualista – e covarde.
Szentes István (Péter Rudolf), funcionário de um pequeno vilarejo da Hungria, é um homem bruto e autoritário que, no dia do casamento de seu filho, tem de lidar com a chegada de dois judeus misteriosos. Ao longo do filme, e ao compreendermos a ligação de Szentes com os recém-chegados, tomamos consciência, de maneira chocante, sobre a real mensagem da produção. Sim, 1945 é um filme de mensagens. E, talvez exatamente por isso, assisti-lo é uma experiência enriquecedora.
O tempo inteiro, o clima de suspense e tensão soa como uma bomba-relógio; com os minutos contados para sua explosão. Isso se dá não somente pelo retorno do grupo de judeus, mas principalmente pelas cenas de núcleos distintos do vilarejo, cada um sofrendo o impacto dessa chegada de maneira diferente. A certa altura, o longa lembra uma estrutura de peça de teatro: um cenário limitado, muitos personagens, cada um com seu próprio conflito, mas todos sofrendo por um fator em comum. E isso realmente é um mérito.
Enquanto um personagem luta contra o crescimento de sua culpa, outra enfrenta questões mal resolvidas sobre seu destino. É quase como se todos os habitantes daquela cidade estivessem sofrendo de uma epifania coletiva, e, em sua grande maioria, apenas complicações vêm à tona. Afinal, após uma guerra, há duas opções para se continuar vivendo: admitir a tragédia e recomeçar, ou “jogar a sujeira para debaixo do tapete” e se apegar a frivolidades. Claramente, o vilarejo húngaro de 1945 optou pela segunda maneira de se viver, e isso desde o início da Guerra. Agora, no entanto, os horrores do conflito clamam por exposição, e nem o mais cínico dos moradores poderá ignorá-los.
A fotografia em preto e branco é, como era de se esperar, a grande responsável por instaurar o clima de narrativa histórica. Como praticamente todas as imagens de arquivo da época não são (ou foram) coloridas, fica mais fácil nos aproximarmos da verossimilhança que os tons de cinza do longa-metragem nos transmite. Ainda assim, o suspense sutil, mas constante, faz com que o filme não perca o ritmo ou a sensação de imediatismo. E, quando a “bomba-relógio” explode, os destroços são muito mais simbólicos do que literais.
1945 não é um filme sobre redenções ou tratados de paz, mas sim, contrariamente, sobre a implacabilidade do destino. Uma única decisão pode afetar a vida de inúmeras pessoas, e esse tema universal é o que torna a produção atraente até ao público mais distante. A crueza com que os fatos nos são apresentados pode fazer com que alguns espectadores projetem suas próprias vidas para aquela realidade. Assim, somos condicionados a enfrentar, juntamente com os moradores do vilarejo, a iminência de rupturas coletivas.
Não há costumes ou tradições familiares que sobrevivam ao verdadeiro caos político. E, depois de uma guerra, o ser humano não se encontra superior ao que era. Sob pressão e medo, devemos cogitar a possibilidade das consequências a longo prazo, e 1945 deixa isso cruelmente claro. Por isso, dê uma chance ao preto e branco e não se acanhe diante da complexidade do pós-guerra. Afinal, vivemos nela ainda hoje.
Ficha técnica
Ano: 2018
Duração: 1h31
Direção: Ferenc Török
Elenco:
Péter Rudolf