Tantas Almas: um pescador de corpos no Rio Magdalena

Viajando pelo Rio Magdalena, o grande rio colombiano que atravessa o país de ponta a ponta, o velho pescador José (José Arley De Jesús Carvallido Lobo) procura por seus filhos, Dionísio e Rafael, sequestrados por paramilitares. No percurso, acompanhado somente por uma persistência quase insana, José se depara com as várias manifestações de desencanto de um país marcado pelo domínio das milícias. Seu objetivo é ao menos conseguir recuperar os corpos dos filhos para poder se despedir, evitando assim que se transformem em outras das tantas almas que vagam pelo Magdalena – principal local de desova dos cadáveres das incontáveis vítimas dos paramilitares.

A dor profunda desse pai, que vê seu mundo desabar ao chegar em casa depois de passar horas pescando no rio que logo descobriria ser também o possível fim de seus filhos, é fio condutor de Tantas Almas, primeiro longa de ficção do colombiano Nicolás Rincón Gille.

Cadáveres boiam no Rio Magdalena há mais de 30 anos. Alavancadas durante a década de 1990, na esteira de exércitos privados que se expandiram desde os anos 1980, as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) surgiram da união de narcotraficantes, proprietários de terras, políticos, empresários, mercenários estrangeiros e militares. Em 2002, essas milícias de extrema-direita atacavam camponeses e ONGs progressistas, com apoio extraoficial do presidente do país à época, Álvaro Uribe.

Ambientado em 2003, Tantas Almas retrata, através da jornada de seu protagonista, facetas do viver sob o controle paramilitar.

Para acompanhar as novidades do cinema latino-americano, assine gratuitamente a newsletter ERA UMA VEZ NA AMÉRICA LATINA

PESCADOR DE CORPOS

Rincón Gille conta que a ideia para o filme surgiu em 2008, quando viajava pela região do Rio Magdalena fazendo um documentário e ouviu diversos relatos sobre a violência paramilitar que arrasou comunidades e vidas. “Era enlouquecedor o que me contavam, e, ainda assim, essas pessoas conseguiram retomar suas vidas, apesar de toda a dor. Não era questão de sobrevivência, era também a necessidade de encontrar um novo sentido na vida que pudesse transcender o terror.”

“Tantas Almas”/ Divulgação

Terror que é habilidosamente reconstruído pela ficção do diretor. Em Tantas Almas, a atmosfera é de temor ininterrupto, porque os riscos são ininterruptos. Armas e cadáveres formam parte da paisagem e definem regras implícitas. Procurar corpos é proibido, toques de recolher são lei. Estar no lugar errado na hora errada pode custar caro, assim como fazer perguntas. Mas nada disso é suficiente para fazer José racionalizar seu desespero, tentar se autopreservar. Não desistir de buscar pelos filhos e evitar que se transformem em almas errantes é seu único  alento, afinal. Para ele, a única maneira de dar sentido a seguir vivendo no meio em que vive. 

É forte a imagem do pescador que outrora vivia do Rio Magdalena e agora revira esse mesmo rio, essa enorme vala comum das vítimas dos desaparecimentos forçados, numa busca desesperada pelos próprios filhos. E é forte acompanhar como a insistência na busca reflete a crescente de angústia de alguém que não tem mais muito a perder.

Em seu percurso pelo Magdalena, o protagonista também cruza com desertores, com paramilitares (com os que mandam e os que são mandados), com outras vítimas, outros corpos. Com gente que tem medo e gente que se organiza e ajuda como pode. Personagens que compõem com amplitude de nuances esse cenário social aterrador. 

CORPOS E TERRITÓRIOS

Como o mexicano A Noite do Fogo, de Tatiana Huezo, Tantas Almas trata de corpos (vivos ou mortos) e territórios submetidos ao poder paramilitar, embalados pela constante iminência dos desaparecimentos. Dois filmes sensíveis sobre o sofrimento causado pela violência paramilitar em seus países. O primeiro, partindo da perspectiva da juventude, das garotas sementes de Huezo. O outro, focado num velho pescador dilacerado, que já não tem tempo a perder, que está exausto e encontra na impulsividade do desespero energia para mover-se adiante – onde quer que seja adiante.

Impressionante, aliás, que o intérprete de José não seja um ator profissional. Com a proposta de filmar numa cidade devastada pela violência 20 anos atrás, tendo no elenco pessoas que testemunharam o que é contado no filme, Rincón Gille conseguiu um protagonista de olhar profundamente sincero, do qual é impossível desviar a atenção. Impressionante também que a aflição acachapante de um homem, em contraste com a magnitude visual e simbólica do maior rio colombiano, fale tanto sobre as fissuras de um país.

Tantas Almas competiu com Memoria para representar a Colômbia no Oscar 2022 de Melhor Filme Internacional e está disponível para aluguel e compra nas plataformas digitais.

Leia também: “Los Silencios, um filme brasileiro sobre fantasmas”

Ficha Técnica:

Direção: Nicolás Rincón Gille

Duração: 2h17

País: Colômbia, Brasil, Bélgica e França

Ano: 2019

Elenco: José Arley de Jesús Carvallido Lobo

Gênero: Drama

Distribuição: Vitrine Filmes

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário