Depois de se firmar como uma das grandes realizadoras de filmes de gênero do cinema nacional contemporâneo com o slasher O Animal Cordial, seu primeiro longa-metragem, a diretora Gabriela Amaral Almeida chega nesta quinta (2) aos cinemas com A Sombra do Pai, uma crônica de horror sobre a infância, a paternidade e o trabalho.
O filme gira em torno da relação da pequena Dalva (Nina Medeiros), de oito anos, com o pai, Jorge (Julio Machado). Órfã de mãe, a garota é cuidada pela tia Cristina (Luciana Paes) e sustentada por um pai distante e reservado, que passa o dia trabalhando e se limita a não deixar faltar o básico para a filha. Quando Cristina decide se casar e sair de casa, Dalva é obrigada a assumir responsabilidades de gente grande, enquanto Jorge se vê confrontado pelas demandas de uma criança que até então não fazia parte de sua rotina.
Jorge é um personagem que tem muito do homem contemporâneo da classe trabalhadora brasileira. “Especialmente no Brasil, o homem é um ser ausente. As crianças crescem com a ausência desse pai, que se coloca presente de um modo virtual, digamos, levando dinheiro para casa. Isso cria monstros. Conduzir a trajetória de uma criança vai muito além de simplesmente ser presente [como] provedor”, analisa o ator Julio Machado.
Em O Animal Cordial, Almeida aborda o universo do trabalho a partir de um restaurante de classe média alta. Ali os conflitos de classe colapsam dentro de um único ambiente e se dão representados por clientes, patrões e empregados. Dessa vez, porém, a abordagem é outra. A diretora opta por confrontar a origem de masculinidade e paternidade problemáticas diretamente com a questão do trabalho, retratado com base na relação entre classe trabalhadora e estruturas de exploração. Jorge é empregado da construção civil, e daí são retirados símbolos para falar de opressões e processos de desumanização intrínsecos às máquinas de moer gente do capitalismo.
“O Jorge pertence a uma classe baixa. Uma coisa que me interessava muito na escrita do personagem é que é como se a essa classe fosse negado o direito de sentir, porque o sentimento é contraprodutivo. Sentimentos param a máquina de produção capitalista. Então, nessa base da sobrevivência é muito difícil pregar qualquer discurso que não seja o discurso da comida na mesa, da conta paga. É um lugar de brutalidade, que é quase que também um único código de sobrevivência que esse personagem dispõe”, esclarece Amaral.
Enquanto Jorge, cada vez mais sub-humano, represa os sentimentos, engessa as próprias frustrações e toca o cotidiano sentindo-se perseguido por forças que o ameaçam e transformam, Dalva se apega à possibilidade sobrenatural de voltar a ter conforto e afeto para fugir da negligência afetiva do pai e da falta de espaço na nova vida da tia.
Nesse filme, a infância invisibilizada e descuidada por adultos que possuem outras prioridades também serve de material para explorar o desconhecido. Solitária, a criança não possui referências de universos mágicos, fantasiosos e encantados para escapar da própria realidade bruta, então recorre a rituais populares para testar seus poderes de conexão com o oculto e apostar numa tentativa de mudança na dinâmica familiar.
Esse eixo temático de A Sombra do Pai já havia sido explorado pela diretora no curta-metragem A Mão que Afaga. Nele, Luciana Paes interpreta uma mãe que trabalha como operadora de telemarketing e que, apática, precisa preparar uma festa de aniversário para o filho.
Questão recorrente nas obras de Amaral, as engrenagens que não dão espaço social nem para o sentir adulto nem para as subjetividades infantis funcionam sem parar. Assim, em A Sombra do Pai, uma crônica de horror, o sobrenatural se manifesta tanto para coisificar homens como para servir de esperança à pequena e perturbada protagonista.
“Eu sempre cito, em diversas entrevistas, como o Frankenstein de Mary Shelley, que é pra mim um arquétipo desse personagem [Jorge], foi presente durante a minha criação. O Frankenstein é um personagem, um monstro, que tem quantidades iguais de maldade e bondade, só que, por ter sido abandonado pelo pai, ele não sabe dosar isso. O Jorge se aproxima do arquétipo de Frankenstein a partir do momento em que ele tem dois caminhos de ação, mas não tem uma condução humana que o permita escolher entre os caminhos. Ele é levado, é como se essa superestrutura, essa coisa que ele está construindo, o levasse a ser mau. Então ele é um Frankenstein também, ele é o meu Frankenstein”, confessa a diretora.
A Sombra do Pai não é um filme de sustos, mas de atmosfera. Gabriela Amaral Almeida usa do suspense e dos elementos de terror para, num filme mais contido que o anterior, representar relações familiares disfuncionais que são vítimas diretas de relações sociais também disfuncionais.
Mais uma vez, a diretora prova que em momentos coletivamente caóticos esses códigos do gênero horror, dosados em meio a contextos realistas, nos permitem acessar camadas mais profundas de compreensão do mundo material. E graças também ao desempenho do trio de atores – com destaque para Nina Medeiros (As Boas Maneiras) – a crescente de tensão no filme torna-se eficaz tanto para quem procura “somente” por um filme de terror como para quem busca por algo a mais nas entrelinhas.
*A Sombra do Pai chega aos cinemas distribuído pela Pandora Filmes e tem circuito garantido em vários estados do país graças ao projeto Caixa de Pandora, parceria firmada entre a distribuidora e a rede Cinépolis com o objetivo de viabilizar uma maior circulação de filmes independentes no circuito comercial brasileiro. Fique atento(a) à programação da sua cidade!
Trailer:
Ficha técnica
Direção: Gabriela Amaral Almeida
Duração: 1h32
País: Brasil
Ano: 2019
Elenco: Nina Medeiros, Júlio Machado, Luciana Paes
Gênero: Drama, Terror
Distribuição: Pandora Filmes
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