[Coluna] BBB19, a pior e derradeira edição do principal reality show do país

O Big Brother Brasil 19 termina nesta sexta-feira (12) batendo um marco infeliz: esta foi, sem dúvidas, a pior edição da história do programa.  E esse marco não é fruto de baixa audiência causada pelo desgaste do interesse do público. Muito pelo contrário. Em janeiro, quando a atração começou a ser exibida nas noites da Rede Globo, a expectativa era alta; trata-se, afinal, do maior reality show do Brasil, exibido diariamente no horário nobre da maior emissora televisiva do país.

Porém, ao passo que as semanas iam passando e as peças do jogo se mostrando, ficava claro que, depois de quase duas décadas no ar, o formato faliu. Não porque o público não tenha mais interesse em entretenimento escapista no fim de suas noites – bem ou mal,o programa ainda figura entre os assuntos mais comentados do Twitter – mas porque  uma combinação esdrúxula de fatores – provocados pela própria produção do programa – enterraram qualquer chance de o reality continuar sendo visto como entretenimento, diversão ou um jogo minimamente confiável, que é dado ao público com o mínimo de neutralidade por parte de quem comanda o show.

Por omissão e interferências equivocadas da produção o programa se consagrou, neste ano, como um verdadeiro show de horrores, vitrine do que existe de mais podre na sociedade brasileira contemporânea. Claro que, de qualquer maneira, o reality espelharia a sociedade. Não é a primeira vez na história dos realities que participantes duvidosos chegam mais longe do que mereciam no jogo. Mas a forçação de barra para vender o enredo da polarização política do país dentro do programa foi irresponsável, negligente e endossou comportamentos criminosos.

Danrley, jovem negro da Rocinha eliminado por ter “jogado demais”, por “se achar demais”; chamado de arrogante por colegas de confinamento e público. Foto: TV Globo

A princípio houve uma clara tentativa de usar o convívio dos participantes para reproduzir os conflitos sociais mais recentes. Aparentemente, a produção acreditava que escolhendo determinado elenco seria possível criar exatamente a narrativa que desejavam, tal como uma novela. Quando perceberam que os brothers não realizaram os movimentos esperados, a dinâmica teve de ser alterada.

Daí em diante não havia mais necessidade de embates direita e esquerda; as “moças da direita” foram compradas pelo programa como “moças ingênuas, tolas, que falam besteirinhas mas são engraçadas”, enquanto o pessoal da esquerda ou foi taxado de chato, parado no bailão e problematizador ou de arrogante e prepotente… Nada de novo sob o sol. O enredo estava traçado: as mocinhas divertidas e debochadas eliminariam os militantes, gente sempre inconveniente para um programa desse tipo.

Ao forçar determinadas personagens no material que ia ao ar na TV, que é o que é visto pela maior parte da audiência – pessoas que não assinam pay per view -, e ridicularizar outras para manipular os afetos do público, o BBB 19 tomou um rumo um tanto quanto espinhoso. Racismo, intolerância religiosa, machismo e homofobia rolaram soltos, e nada foi feito. Não à toa, a edição com maior número de participantes negros foi também a mais problemática. Só migalhas de audiência importavam, mesmo que fosse audiência racista, criminosa.

Hana foi atacada por colegas e público por ser feminista. Alguns participantes homens chegaram a dizer que ela deveria ser adestrada. Foto: TV Globo

Um dos maiores programas populares do país engrossou o caldo que já vinha fervendo desde a eleição, quando parte da população se sentiu no direito de tirar seus preconceitos do armário e praticar violência simbólica e emocional contra minorias sociais com a desculpa do “é só minha opinião”, respaldados pela eleição de um presidente que usa dos mesmos artifícios de ódio para alavancar sua popularidade. O pior tipo de audiência encontrava, enfim, representantes de seus preconceitos no horário nobre da TV aberta brasileira.

No país onde agora os fatos não importam e verdades são fabricadas, até o apresentador do Big Brother Brasil sentiu-se no direito de criar as próprias histórinhas e ocultar o que de fato acontecia na casa mais vigiada do Brasil. Participantes negros foram humilhados e oprimidos, com covardia, pelas costas. Nem sequer souberam, antes de suas eliminações, sobre os ataques que sofriam. Não puderam se defender. Enquanto isso, os agressores eram protegidos por vts que os desenhavam como engraçadinhos, enquanto ocultavam da maioria do público os absurdos que faziam.

Errou a parcela de público que organizou uma torcida gigantesca para gente que representa tudo que socialmente deve ser combatido, um claro reflexo da situação do país. Mas errou também, e principalmente, a emissora, ao deixar tais violências correrem soltas, pintando agressores de “divertidos e bons jogadores” só porque serviam, de alguma forma, à dinâmica fracassada do programa. É no mínimo constrangedor que a mesma emissora que coloca no ar um quadro que cutuca o presidente eleito toda semana também enalteça versões dele em outro horário.

Gabriela sofreu intolerância religiosa de mais de um colega de confinamento / Foto: TV Globo

A brincadeira também perdeu ao abdicar da manutenção de relações honestas com o público. A cada semana, as regras das próximas jogadas pareceram ser anunciadas de acordo com a situação dos participantes favoritos da produção. Não houve transparência quanto ao jogo e muito menos respeito em relação aos participantes. Não há, portanto, nenhum horizonte favorável para o formato, tal como ele tem sido conduzido.

Com recorde de dois casos de polícia, o BBB 19 serviu pura e simplesmente de palco para ódio e intolerância. Financiado por inúmeros patrocinadores, o programa preferiu garantir qualquer burburinho, ainda que negativo, para manter o pior tipo de relevância possível. Nesse cenário, ser racista virou sinônimo de autenticidade e opressões viraram entretenimento vulgar.

Quem, não sendo branco e privilegiado, arriscará participar de uma próxima edição desse reality? Quem entrará num programa como esse para ser humilhado por torcidas e preterido pela produção? E como o público continuará assistindo ao programa depois de meses tão tóxicos, absurdos e repulsivos?

Rodrigo também sofreu intolerância religiosa dentro da casa, além de sérios ataques racistas em suas redes sociais. Foto: TV Globo.

Um programa que confina pessoas diferentes certamente está suscetível a situações problemáticas, nunca foi diferente. Mas a maior questão disso tudo é que estamos em 2019, a Rede Globo é uma concessão pública  e deve satisfações sobre seu conteúdo à sociedade. Não há mais a menor possibilidade de permitirmos omissões e espetacularização sobre violências de gênero, classe, raça e sexualidade. Empresas que subsidiam tais comportamentos em prol dos próprios lucros devem ser expostas e questionadas, sim.

Não há qualquer boa expectativa em relação a uma próxima edição do  Big Brother Brasil. De entretenimento e distração, o programa passou a puxadinho dos esgotos da internet e da vida política brasileira. Para tornar-se de fato um jogo minimamente saudável, seria necessário uma reinvenção. Seria necessário que apresentador e direção assumissem para si a responsabilidade de conduzir a atração através de outros tipos de conflito, sem dar margem, e muito menos gratificações em dinheiro, para quem se coloca de forma tóxica e opressora diante de problemas sociais estruturais. A mudança deve começar pela postura da equipe e pela escolha acertada do elenco, seguramente. Não é mais aceitável que entretenimento seja terra sem lei.


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