Em Cidade Pássaro, São Paulo é um labirinto a ser explorado pelos irmãos nigerianos Amadi (O.C. Ukeje) e Ikenna (Chukwudi Iwuji). Mas embora iniciem suas jornadas partindo de um mesmo ponto, cada um deles acaba afetado de maneiras diferentes pelo emaranhado de ruas, ruídos, histórias, pessoas e relações que se entrecruzam em uma das maiores metrópoles do mundo.
Já há algum tempo vivendo no Brasil, e supostamente trabalhando como matemático em um instituto de tecnologia, Ikenna deixa de enviar notícias para a família na Nigéria. É então que seu irmão mais novo, o músico Amadi, chega a São Paulo com a missão de localizá-lo e colocá-lo em contato com a mãe.
Aos poucos, porém, Amadi descobre que Ikenna não leva a vida estável e bem sucedida que contava à família. Em sua busca, refazendo os passos do primogênito perdido e juntando peças como quem monta um quebra-cabeça, o músico passa a perceber São Paulo como um espaço de dinâmicas múltiplas; um labirinto físico e subjetivo de sentidos que o levará a outro tipo de compreensão a respeito do irmão e de si mesmo.
Dirigida por Matias Mariani, esta crônica audiovisual urbana, já disponível na Netflix, usa a materialidade do cotidiano de uma cidade impressionante e ao mesmo tempo opressora como São Paulo, combinada a singulares cortejos ao fantástico (e até à ficção científica), para alcançar as camadas mais abstratas do íntimo de cada um dos personagens postos em tela.
Delineia-se desse modo um enredo surpreendente, que vai além de abordagens tradicionais de temas como imigração, alteridade e pertencimento ao optar por se dedicar à espiral de experiências de dois irmãos cujos percursos, quase fantasticamente espelhados, terminam tomando rumos inesperados. O resultado é uma instigante história sobre redescobrir-se.
AMADI E IKENNA
Depois de anos longe de sua terra natal, Ikenna desenvolve uma obsessão em encontrar alguma ordem no caos e aposta nas probabilidades para finalmente conseguir transcender seu não-lugar, libertando-se de entornos que insistem em absorvê-lo de maneira compulsória – tanto na Nigéria como em São Paulo. Amadi, por outro lado, parece cada vez mais desejar tornar-se parte desse caos da metrópole, um indivíduo resiliente camuflado na multidão, pronto para distanciar-se das obrigações familiares e, sozinho, renascer da melhor forma possível.
Operando como duplos, pelo menos até certa altura, Amadi e Ikenna representam juntos uma jornada do herói típica de protagonistas imigrantes – os que vão, percorrendo os passos dos que já foram, e depois encontram seu próprio destino. Ambos esbarram no estranhamento do espaço ou nas limitações de comunicação, por exemplo. Por isso, a singularidade do longa reside em sua forma – narrativa e visual.
No foco da trama, as metamorfoses e as inércias dos sujeitos relacionadas aos ambientes. Personagens são sempre estrategicamente enquadrados em planos abertos que denunciam a vulnerabilidade individual diante da grandiosidade da selva de pedra paulistana. A partir daí, Mariani orquestra com ritmo de poesia o tratamento panorâmico dado a comentários sociais bastante pertinentes às temáticas retratadas.
O mistério, o melodrama familiar e o drama social se encontram numa harmonia inusitada. Da mesma forma, o concreto e o metafísico das experiências particulares ou compartilhadas. Fundamental para toda a estrutura do longa, as “estranhezas” intrínsecas aos fluxos ininterruptos da metrópole (solidão, insanidade, idiossincrasias, etc) se transformam em técnica cinematográfica.
Destaque entre os lançamentos nacionais de 2020, Cidade Pássaro possui autenticidade suficiente para encantar e solidez necessária para envolver o espectador em seu quebra-cabeça narrativo. Imersivo, o filme explora águas profundas da identidade e se consagra como título de relevância quando o assunto é migração no cinema brasileiro.
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Teaser:
Ficha Técnica:
Direção: Matias Mariani
Duração: 1h55
País: Brasil
Ano: 2020
Elenco: OC Ukeje, Indira Nascimento, Paulo André, Ike Barry, Chukwudi Iwuji
Gênero: Drama
Distribuição: Vitrine Filmes
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