A Febre: doença do não pertencer

Há muitos anos, Justino (Regis Myrupu), um indígena do povo Desana, deixou sua comunidade localizada na região do rio Uaupés, noroeste amazônico, e migrou para periferia de Manaus com a família. Desde então, o protagonista de A Febre, longa-metragem brasileiro dirigido por Maya Da-Rin, trabalha como vigilante do porto de cargas local. 

Enquanto os dias se repetem para o personagem, sua filha, a enfermeira Vanessa (Rosa Peixoto), se prepara para estudar medicina na Universidade Federal de Brasília. Conforme a partida da moça se aproxima, Justino é tomado por uma estranha febre.

O INDIVÍDUO E O ESPAÇO

Convertido em trabalhador disciplinado, o segurança costuma ir de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Durante muito tempo, a preocupação com o bem-estar dos filhos serviu de motivação para sua permanência em um emprego maçante e solitário. Não se sabe o que motivou o deslocamento de Justino no passado, mas com a filha prestes a se mudar e o filho já com família formada, o peso de sua função passa a se fazer sentir com mais força. E é então que o personagem, profundamente descontente, começa a adoecer.

‘A Febre’/ Divulgação

Na tela, a mise-en-scène composta por Da-Rin delineia com meticulosidade a relação do protagonista com diferentes espaços físicos. No trabalho, Justino aparece perdido entre os ângulos austeros dos contêineres de carga. Ali, o personagem é constantemente confrontado pela burocracia branca e pela convivência com o colega Wanderlei (Lourinelson Vladmir), um ex-capataz de fazenda. Em meio ao mecanicismo do modo de vida capitalista, Justino não é mais do que recurso humano explorável de uma empresa; e aos olhos do colega capataz sequer se parece com um “indígena de verdade”.

Despojado de identidade durante a rotina de trabalho, embora também sempre implicitamente tratado como “o outro”, Justino é  sentenciado a uma espécie de não-lugar. Somente ao chegar em casa, no fim do dia, é que o personagem encontra espaço para finalmente falar sua língua, protestar contra as comidas de supermercado, manifestar hábitos e repassar a oralidade das histórias ancestrais ao neto.

Há, portanto, dois movimentos paralelos acontecendo em A Febre: o de Justino, que ganha contornos fantásticos ao tratar o estado febril do personagem como uma metáfora para seu crescente desejo de retornar ao povo Desana; e o de Vanessa, prestes a viajar pelo Brasil em busca de um sonho acadêmico e profissional.

A FEBRE DO NÃO PERTENCIMENTO

São poucos os diálogos de A Febre, mas bastante realistas – e distantes de exotização – as minúcias do registro sobre a pluralidade de experiências e desafios vividos por indivíduos indígenas no Brasil contemporâneo.

Imagem: Divulgação

A certa altura, por exemplo, Justino recebe a visita do irmão e da cunhada, que ainda vivem entre os Desana. A partir desse reencontro de irmãos, numa singela cena de jantar em família, o filme contrapõe a exaustão do sujeito urbano automático, cujo corpo é tomado pelo realismo mágico de uma febre indicativa do acúmulo de sofrimento causado pela sensação de não pertencimento e do anseio pelo retorno ao modo de vida originário, aos desafios enfrentados por aqueles que, ainda hoje, permanecem em suas terras, abandonados à própria sorte pelo Estado. 

Na outra ponta, Vanessa representa uma geração de minorias sociais que, bem ou mal, conseguiram acesso e direito à universidade nos últimos anos – além do que,  seu trabalho como enfermeira aponta para as limitações da saúde pública brasileira no simples trato rotineiro de pacientes indígenas.

Então, elaborando um recorte de Brasil que quase nunca chega ao público de cinema, recorte protagonizado fundamentalmente por atores indígenas e que transita por espaços de cruzamento entre essência, subjetividades e materialidade cotidiana, A Febre se destaca como um dos títulos nacionais mais singulares e imperdíveis de 2020.

*Filme premiado na 72ª edição do Festival de Cinema de Locarno (melhor ator para Regis Myrupumelhor filme segundo a crítica internacional e prêmio do Júri Jovem) e grande vencedor do 52º Festival de Cinema de Brasília .

Leia também: “Los Silencios, um filme brasileiro sobre fantasmas”

Trailer:

(Fonte: Vitrine Filmes/ YouTube)

Ficha Técnica:

Direção: Maya Da-Rin

Duração: 1h38

País: Brasil, Alemanha, 

Ano: 2020

Elenco: Regis Myrupu, Rosa Peixoto, Johnatan Sodré, Lourinelson Vladmir

Gênero: Drama

Distribuição: Vitrine Filmes

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