Em maio deste ano, durante o Festival de Cannes, a queniana Wanuri Kahiu chamou atenção com seu filme Rafiki (Amiga, em português), uma história de amor adolescente lésbico que foi censurada no Quênia.
No país, o filme foi proibido pelo comitê de classificação de filmes por “legitimar homossexualidade”, prática considerada crime e punida com até 14 anos de prisão. Em entrevista ao El País, a diretora pediu aos quenianos que não assistam ao seu filme e não coloquem a sua vida em risco.
“Vamos nos assegurar de que ele [Rafiki] esteja bloqueado no território queniano. Devemos demonstrar que obedecemos a lei. Peço que ninguém o pirateie. Que ninguém o veja em streaming. Que ninguém procure um link, porque colocaria em perigo minha liberdade e minha vida”, declarou.
Apesar de ter sido considerada pelo governo queniano como uma obra obscena, Rafiki é, na verdade, um misto de encantadora história de amor com estarrecedor retrato da intolerância humana.
O longa, que faz parte da programação da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é inspirado em Jambula Tree, romance da ugandense Monica Arac de Nyeko, e acompanha a relação que floresce entre as jovens Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva), filhas de famílias rivais na política.
Kena é a filha de um comerciante e uma professora que estão separados. Ela vive apenas com a mãe, mas ajuda o pai a tomar conta do comércio e a fazer campanha eleitoral. Ziki, por sua vez, vem de um outro mundo. Extrovertida e cheia de aspirações, ela é filha de um empresário que também tenta ser eleito. Em comum, as duas compartilham o fato de pertencerem à mesma cidade, frequentarem o mesmo espaço religioso e serem vítimas da mesma ignorância, conservadorismo e violência da comunidade.
Rafiki pode ser dividido em dois momentos. No primeiro, Ziki e Kena se conhecem, começam a interagir e percebem o carinho e admiração que sentem uma pela outra. Tudo é muito colorido, musical, vibrante e até mesmo moderno. Depois, quando as garotas decidem viver sua paixão, o longa se permite assumir um tom mais denso e uma postura de denúncia.
A partir das vivências das duas protagonistas, a diretora queniana percorre diversas esferas por onde preconceito e violência contra gênero e orientação sexual – institucionalizados no país – se instalam. Ela vai do micro (família, círculo de amigos e vizinhos) ao macro (religião, polícia, Estado) para demonstrar como a “normalidade” de uma comunidade cai por terra quando pessoas são possuídas pelo ódio contra aquilo que acreditam ser diferente e inaceitável.
Nesse contexto surge, por exemplo, a figura da vizinha fofoqueira. À primeira vista, a personagem parece ser apenas alguém bem-humorada, que gosta de bisbilhotar a vida alheia e causar pequenas intrigas. Mais tarde, ela assume uma representação perfeita da pessoa disposta a fazer concessões morais em prol da intolerância.
Por isso, é importante notar também o desenvolvimento das figuras femininas coadjuvantes do filme. Nenhuma delas está ali por acaso. Todas cumprem funções fundamentais, tanto para a narrativa quanto para a representação da dinâmica social a que a obra se refere.
Qualquer outro filme que adotasse uma premissa tão “Romeu e Julieta” sobre amores impossíveis estaria na mira de críticas ferrenhas sobre originalidade, mas em Rafiki os clichês sobre esse tipo de romance são usados a favor da contextualização social das duas protagonistas negras e lésbicas. É assim que a diretora subverte Romeu e Julieta; de forma tão doce quanto amarga.
Com Rafiki, Kahiu leva às grandes telas de países outros o seu olhar interno sobre o Quênia e sobre o feminino. Ela conta sua história de amor sem desprezar contextos sociais e econômicos, permitindo-se produzir uma narrativa vívida e repleta de afeto; mas tratando também da brutalidade do ódio e da ignorância. O que a diretora consegue fazer ao representar uma comunidade que transita entre a normalidade e a barbárie é impressionante – e, infelizmente, algo que dialoga diretamente com o Brasil 2018.
Rafiki é um filme completo não só pela representatividade que carrega atrás e na frente das câmeras, mas também porque percorre dois mundos: o ideal e o real. À sua maneira, ele nos convida a encarar o real e a não desistir do ideal.
* Este texto faz parte da cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
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Ficha técnica
Direção: Wanuri Kahiu
Duração: 1h22
País: África do Sul, Quênia, França, Holanda, Alemanha, Noruega
Ano: 2018
Elenco: Samantha Mugatsia, Sheila Munyiva, Dennis Musyoka
Gênero: Drama
Distribuição: Olhar Distribuição.
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