Maria (Bárbara Luz) e a mãe (Patricia PIllar) vivem isoladas numa casa localizada entre montanhas e floresta. Depois da partida do pai (Zé Carlos Machado), as duas adotam sua própria dinâmica familiar codependente e cotidiana, cuidando da casa e da plantação. Porém, tudo muda quando um criador de cabras (Lee Taylor) chega à região para dividir o poço de água e a atenção das duas mulheres. Esta seria a sinopse linear de Unicórnio, um filme que de linear e convencional não tem nada – principalmente se pensarmos a nível de cinema nacional.
Neste conto visual nada encantado, o diretor e roteirista Eduardo Nunes (Sudoeste) se inspira nos textos Unicórnio e Matamoros, da autora Hilda Hilst, para criar a narrativa que não transcorre de forma tão simples e previsível quanto uma pacata vida no campo.
Pouco a pouco, o bucolismo das belas paisagens que visualmente parecem tão libertadoras, abre espaço para emaranhados de conflitos internos não revelados e não resolvidos de uma criança tornando-se mulher. Em seu ápice, essas questões convergem numa crescente nebulosa e catastrófica de emoções e sensações que, de tão contidas e secretas, chegam a transbordar.
Atemporal, o longa de Eduardo Nunes não se prende a demarcações do espaço e do tempo ou dos demais personagens – por esse motivo, apenas a protagonista Maria é nomeada, por exemplo. Isso fica claro quando analisamos as duas abordagens do processo de crescimento de Maria. Na primeira, ela está no campo, encarando, intimamente, todo tipo de sentimento em relação à mãe e a sua vida. No segundo, a garota é vista enclausurada em uma sala branca, asséptica e claustrofóbica, conversando com o pai.
O fascinante de ambos os segmentos é justamente a contraposição de sensações causada por eles na interpretação do público sobre a protagonista. Quando livre e respirando ar puro num belo lugar, Maria se sente angustiada á sombra da mãe, frustrada e até violenta. Nesses momentos, há ausência de diálogos e o filme toca sua face contemplativa. Quando “aprisionada” com o pai, a personagem aparece mais à vontade para falar sobre suas reflexões íntimas, fazendo dessas conversas nossas poucas oportunidades de conhecê-la um pouco melhor. Maria pode ser, então, qualquer jovem, em qualquer época, em qualquer lugar.
A transição entre os dois processos da protagonista se dá às vezes por cortes secos, outras vezes por técnicas de luz e som que se assemelham a técnicas de teatro – como os clarões de luminosidade jogados no público durante as trocas dos cenários. Esse tipo de recurso contribui, e muito, para a sensação de imersão no longa, tornando-o quase físico para quem assiste.
Ainda na parte técnica, destacam-se a fotografia suntuosa de Mauro Pinheiro Jr; o design de som brilhante num filme de tão poucos diálogos; a animação, responsável por uma das mais belas passagens do longa; e o trabalho das produtoras Fernanda Reznik e Izabella Faya, encarregadas da locação no Parque dos Três Picos, em Teresópolis, Rio de Janeiro. O lugar é, sem dúvidas, imprescindível para a ambientação da história.
Narrativamente, Nunes se vale também de elementos que transitam entre o realismo e o fantástico para dar o tom poético de Unicórnio. Assim, o diretor consegue compor metáforas a partir de um fruto que remonta à menstruação e ao que ela significa na vida de uma mulher, e a figura do unicórnio, ser místico símbolo da ingenuidade e da pureza que se vai quando o mundo exterior bate à porta e escolhas que estilhaçam relações são feitas em prol de alguma individualidade.
Fica evidente, portanto, o foco da obra no processo de amadurecimento pelo qual passa a personagem Maria. O caminho que a leva da menstruação, no início da projeção, a decisão que culmina em sua despedida do místico, do unicórnio, para adentrar uma nova fase de sua vida. Um caminho tortuoso oriundo das obras de uma autora conhecida por tratar da sexualidade e da saúde mental de mulheres sem pudores ou falsos moralismos.
Unicórnio não é um filme fácil. Ele é lento e exige seu próprio ritmo de apreciação. O diretor poderia ter contado história semelhante em menos tempo, com certeza. Mas não teríamos o mesmo filme. O arrastar das sensações é fundamental para o tom da obra. Em seus livros, Hilst costumava propor fluxos de devaneios pessoais em prosa. Aqui, Nunes nos convida a imergir em seu fluxo de devaneios audiovisuais, nos oferecendo um filme bonito, impactante, singular e que não termina quando acaba.
Assista ao trailer:
(Fonte: Vitrine Filmes/ YouTube)
Leia também: Com Karine Teles, Benzinho é um dos melhores filmes nacionais do ano
Ficha técnica
Direção: Eduardo Nunes
Duração: 2h02
País: Brasil
Ano: 2018
Elenco: Bárbara Luz, Patrícia Pillar, Zé Carlos Machado, Lee Taylor
Gênero: Drama
Distribuição: Vitrine Filmes
COMENTÁRIOS