O Fio Invisível: os horrores do campo e as loucuras da maternidade (com spoilers)

A espanhola Amanda (María Valverde) está passando o verão numa zona rural da Argentina sozinha com a filha Nina (Guillermina Sorribes Liotta), de 4 anos, enquanto o marido trabalha nos arredores. Recém-chegada, ela conhece a vizinha Carola (Dolores Fonzi), com quem rapidamente desenvolve uma relação impetuosa de atração e repulsão que se intensifica à medida que a mulher começa a lhe contar como seu filho David (Emilio Vodanovich), então com a idade de Nina, se transformou em algo monstruoso. Dirigido pela peruana Claudia Llosa e adaptado do livro Distância de Resgate, da argentina Samanta Schweblin, O Fio Invisível (Distancia de Rescate, no original) estreou mundialmente na Netflix.

“O Fio Invisível”/ Divulgação

Um thriller psicológico? Um filme de horror? Uma história fantástica? Um comentário social sobre o campo e a maternidade? Bem, talvez um combo de tudo isso. Ancorado no encontro das realidades de duas mulheres bastante diferentes entre si e colocando foco sobre o mundo interno dessas personagens, o filme trabalha a mistura de gêneros para compor uma narrativa tão atraente quanto inquietante.

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AMANDA, CAROLA E O CAMPO: “EXISTE POR ACASO ALGUM APOCALIPSE QUE NÃO SEJA PESSOAL?”

Amanda é uma mãe superprotetora que aprendeu com as mulheres de sua família sobre a distância de resgate, um fio invisível que a conecta com a filha e a faz estar todo o tempo calculando o quanto parece seguro ou não se distanciar da pequena, em estado permanente de cautela, numa espécie de manutenção de um cordão umbilical variável.

O encontro com Carola, sua experiência como moradora local, vítima das ameaças invisíveis daqueles infinitos campos de cultivo de soja transgênica, e a história sobre David tensionam constantemente esse fio, colocando o senso de distância de resgate de Amanda em alerta: talvez as férias de verão no campo não sejam tão tranquilas e agradáveis como ela havia planejado.

“O Fio Invisível”/ Divulgação

Mesmo assim, são férias. E apesar de se interessar pelo que Carola tem a contar, percebendo sua resistência em lidar com sequelas irreversíveis deixadas em David por um episódio brutal do passado, a sóbria e estrangeira Amanda gasta mais tempo encantada com a espontaneidade da nova amiga do que se dedicando a interpretar o que é de fato importante em seu desconhecido entorno – em tudo o que escuta, em tudo que vê.

Mas quem pode culpar Carola por já não conseguir reconhecer o filho ou por não elaborar racionalmente uma experiência traumática de maternidade, deixando-se tomar pela amargura gerada pela impotência e pelo pavor daquilo que não compreende completamente? Quem pode culpá-la por desejar escapar desse rincão negligenciado do país, em pacto com o agronegócio, onde não há médicos por perto ou sequer água potável confiável? Um lugar que com seus perigos invisíveis produz medo, silêncio e estigma em volta do número insólito de crianças e animais doentes, com manchas ou malformações. Um palco assombrado pelos horrores causados pelos herbicidas fumigados nas monoculturas de transgênicos e em tudo ao redor. Uma pequena sociedade afetada diretamente, em todos as esferas da vida, pelo envenenamento. Um vilarejo que serve de tapete para esconder os crimes contra os direitos humanos cometidos em favor da economia da exportação primária.

Do mesmo modo, quem pode culpar Amanda por se permitir distrair durante as férias, por uma vez não dar atenção a seus instintos, por ignorar os riscos a que ela e a filha foram expostas e acabar arrastada para um apocalipse que é coletivo mas também individual, por deixar falhar o fio invisível?…

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LLOSA E SCHWEBLIN

Fiel à estrutura narrativa do livro de Schweblin, com quem coescreveu o roteiro, Llosa mantém o fluxo original dos diálogos, espinha dorsal da narrativa, assumindo o desafio de localizar as personagens no espaço, algo não exatamente necessário na literatura. Por isso, imagens e sons são compostos de forma a contribuir com o sensorial da história, dando forma física aos espaços, mas também embalando a atmosfera de desvario febril que impregna toda a obra.

“O Fio Invisível”/ Divulgação

Trata-se de uma boa adaptação cinematográfica: especialmente eficiente na reprodução da escalada da tensão e do sentido de emergência que formam parte da essência do livro, embora acabe cedendo em um ou outro momento a artifícios mais genéricos de cinema, como os sustos.

Impressiona, aliás, como o filme se encaixa bem na cinematografia de Llosa. Em sua primeira empreitada no thriller e no sobrenatural, a cineasta, reconhecida por ter conseguido o Urso de Ouro em Berlim e a primeira nominação ao Oscar para uma produção de seu país com A Teta Assustada, de 2009, volta a abordar o feminino arraigado a seu entorno, sob as perspectivas da sexualidade, dos medos e do político, a partir do fantástico da realidade.

Então, dando materialidade ao realismo escabroso dos campos do continente e à falibilidade das obsessões maternais e mantendo-se sempre instigante e desafiador com todas as suas camadas de compreensão, como um bom filme de suspense deve ser, O Fio Invisível figura entre os lançamentos mais relevantes do cinema latino-americano no streaming em 2021. Um excelente exercício de voltar a enxergar como assombroso o que brutalmente é imposto como natural – seja o envenenamento da natureza e das pessoas ou as expectativas impraticáveis da maternidade.

Trailer:

(Netflix Brasil/ YouTube)

Ficha Técnica:

Direção: Claudia Llosa

Duração: 1h33

País: Argentina, Peru, Estados Unidos, Chile, Espanha, Inglaterra

Ano: 2021

Elenco: María Valverde, Dolores Fonzi, Guillermo Pfening, Germán Palacios, Emilio Vodanovich, Marcelo Michinaux, Guillermina Sorribes Liotta

Gênero: Suspense, Horror, Drama

Distribuição: Netflix

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