Odete Roitman é cara do Brasil de Bolsonaro

Quando o primeiro capítulo de Vale Tudo foi exibido em maio do longínquo ano de 1988, ninguém poderia imaginar o impacto social que a novela teria em um Brasil recém saído de uma ditadura. Isso porque o texto do autor e criador Gilberto Braga (Dancin’ Days) foi capaz de fisgar o público por estar antenado à época e pelo ritmo digno de um bom folhetim de suspense policial.

A obra, cheia de personagens complexos e diálogos sobre o cotidiano dos brasileiros, reflete com precisão o comportamento de grande parte do povo. Além do que, ainda que relativamente datada pela tecnologia oitentista, a produção debate problemas comuns vigentes  – o que é irônico e triste.

Odete Roitman (Beatriz Segall)/ divulgação

Por outro lado, para os espectadores mais assíduos de telenovelas, o mistério sobre a morte de uma personagem é o ponto alto de Vale Tudo. A pergunta “quem matou Odete Roitman?”, que faz referência ao assassinato da maquiavélica vilã interpretada por Beatriz Segall (1926 – 2018), foi tão amplamente reproduzida em rodas de conversa ao redor do país que o evento televisivo entrou para a história como um dos mais marcantes da dramaturgia brasileira.

Mas, antes de sua trágica morte, a trajetória dessa verdadeira tirana destacava-se com singularidade. Então, quem é Odete Roitman? Para compreendê-la melhor, é inevitável assimilar as suas características com as de personalidades reais; e é aí que entram as comparações com os apoiadores do atual presidente da República, Jair Bolsonaro.

Bom, para explicar a razão disso, deixemos Odete um pouco de lado e foquemos no enredo da novela.


Vale tudo e qualquer coisa

Logo no primeiro capítulo, o drama de uma mãe amorosa que é deixada na rua da amargura pela própria filha comoveu o público. Maria de Fátima Accioli, vivida por Glória Pires no ápice de sua carreira, vende a casa onde morava com a mãe Raquel Accioli (curiosamente protagonizada pela ex Secretária da Cultura Regina Duarte), e vai para o Rio de Janeiro atrás do modelo bon vivant César Ribeiro (Carlos Alberto Riccelli). Assim, Raquel, que engata em um namoro com Ivan Meireles (Antônio Fagundes), passa a vender sanduíches nas praias cariocas.

Raquel (Regina Duarte) e Fátima (Glória Pires)/ divulgação

A partir daí, decorrem os diferentes rumos das vidas de mãe e filha. Raquel, revoltada com a série de humilhações e trambiques de Fátima, promete vencer na vida sem passar a perna em ninguém. Já a rebenta ingrata, em nome de dinheiro, prejudica a amiga Solange Duprat (Lídia Brondi) e torna-se cúmplice de Odete.

Atualmente, essa sinopse pode soar desgastada na ficção televisiva, certo? No entanto, lembremos que Vale Tudo é da década de 1980, e foi uma das primeiríssimas produções a antagonizar mãe e filha. 

Agora, para embasar o destino de Fátima, o autor compôs a família Almeida Roitman – que, bem ou mal, representa a parcela mais conservadora e elitista do povo. Heleninha de Almeida Roitman (Renata Sorrah) é uma artista plástica e alcoólatra em recuperação; já seu irmão Afonso (Cássio Gabus Mendes) é um jovem idealista recém chegado da França e apaixonado pelo Brasil. Ambos foram criados pela tia, a amorosa embora frívola Celina (Natália Timberg), que ensinou valores e integridade aos sobrinhos.

Afonso (Cássio Gabus Mendes) e Solange (Lídia Brondi)/ divulgação


Odete de Almeida Roitman

Por último, Odete – matriarca da família, principal figura de toda a novela e objeto de análise deste texto – faz a sua primeira aparição no capítulo 28. Anteriormente a isso, a chefe dos Roitman é apenas mencionada pelos demais personagens, e paira quase que como uma entidade fantasmagórica no folhetim. Aliás, a vilã só surge em tela quando visita a terra natal para resolver questões pessoais; e, por pessoais, leia-se meter-se na vida dos filhos e da irmã.

Na cena de sua introdução, Odete é revelada de maneira sutil por uma câmera econômica, que mostra algumas frações de seu rosto. Desse modo, com ares de refinamento e petulância, ela conversa pelo telefone e realiza comentários altamente depreciativos sobre o Brasil – como faz com frequência ao longo dos capítulos.

Odete e Celina (Natália Timberg)/ divulgação

A propósito, na abertura de Vale Tudo, a artista Gal Costa canta em tom de protesto, “Brasil/ Mostra tua cara/ Quero ver quem paga/ (…)/ Qual é o teu negócio?/ O nome do teu sócio?/ Confia em mim”. O simbolismo que isso carrega é autoexplicativo; o país latino-americano tem democracia frágil, efêmera. Aqui, tem-se memória curta e uma tendência enorme a cair nas mãos de predadores. Quem comanda é justamente a desigualdade e, embaixo disso, a criminalidade vigora.

Odete, por exemplo, dona e presidente de uma companhia aérea de voos domésticos, lucra às custas do povo brasileiro e guarda a fortuna em contas bancárias de paraísos fiscais; isto como forma de driblar os impostos e para enfatizar o quão falho é o crescimento econômico da nação. A corrupção, portanto, é latente no dia a dia da milionária e, como boa magnata, ela está disposta a sacrificar qualquer um que cruze o seu caminho.


Europa acima de tudo, Odete acima de todos

Desde o american way of life, junto ao pedante eurocentrismo do status quo, até o vira-latismo mais torpe da elite brasileira, Odete é uma mistura cínica e assertiva de tudo isso. Já as várias expressões em francês e aquelas de essência xenófoba e racista, como “paisezinho infeliz” ou “terra de tupiniquins”, são comuns na boca metida à chique da vilã.

O desprezo pelo Brasil é tamanho que nada é bom o suficiente. Por sinal, esse pensamento poderia ser vulgarmente condensado dentro da lógica de que a Europa está acima de tudo, e Odete acima de todos. Parece-lhe familiar?

Ademais, a hipócrita antagonista da novela cria laços sem o menor tipo de afeto, porém exige lealdade irrestrita para consigo. Como resultado, dá-se a sua aproximação de pessoas tão oportunistas quanto ela mesma.

Uma amostra disso é o vice-presidente da companhia aérea, Marco Aurélio Cantanhede (Reginaldo Faria). Escolhido a dedo por Odete para chefiar a empresa em sua ausência, ele também foi selecionado o marido ideal para a filha Heleninha. O casamento não deu certo, mas a chefe dos Roitman mantém o ex-genro como aliado de negócios. Uma das cenas mais inesquecíveis de Vale Tudo, inclusive, é na qual Marco Aurélio foge do Brasil em seu jatinho particular, com malas cheias de dinheiro desviado da firma, e dá uma “banana” para quem fica.

Marco Aurélio (Reginaldo Faria) e Leila (Cássia Kiss)/ divulgação


Uma certa excitação com a decadência

Como não poderia ser diferente, Odete estabelece a sua vida amorosa em torno de relações baseadas em poder. Para atrair um novo amante, de perfil mais jovem do que ela, a predadora sexual oferece presentes caríssimos e viagens internacionais.

Depois, a malvada conhece César, o antigo cupincha e amante de Fátima. É em um dos encontros com César que o casal reproduz um dos diálogos mais interessantes da novela – ao passo em que Odete admite ver e divertir-se com filmes pornográficos independentes, principalmente os brasileiros. Por conseguinte, como é pontuado pelo modelo, ela possui uma certa “excitação com a decadência”.

Fátima e César (Carlos Alberto Riccelli)/ divulgação

Em conformidade a essa camada da vilã, está o comportamento sexualmente transtornado da direita brasileira de hoje. Tanto na misoginia de vários discursos de Bolsonaro quanto nas manifestações de seus apoiadores – que protestam contra os Direitos Humanos e levantam objetos de formato fálico –, o falso moralismo supostamente cristão tem como objetivo final o retrocesso generalizado. Em suma, é como se poder e sexo estivessem ligados e, quando isso acontece, a sexualidade esvazia-se por completo e cede espaço apenas para o controle dos corpos.


Quem dá as cartas

Da porta para dentro, a família tradicional heteronormativa é exemplo de bons costumes; da porta para fora, vale tudo. O Estado diz-se laico, mas não o é. E, ainda que o fosse, em que contexto caberia um Deus cristão que sequer exerce os benévolos e mais básicos preceitos de Jesus Cristo? Onde há nacionalismo, na política de um presidente que bate continência à bandeira de outro país? 

Tal como Bolsonaro, Odete diz-se rígida, mas não respeita nenhum limite. Ou melhor, é tudo bastante extremo e carregado de hipocrisia.

Finalmente, em um país onde está cada um por si, os mais fortes polarizam a sociedade e deixam as sobras do que comem à maioria de pobres brasileiros. Em outras palavras, quem dão as cartas são os ancestrais, os pupilos de Odete Roitman e os de Jair Bolsonaro; ao resto, cabe trabalhar com o que tem.


Todos os capítulos de Vale Tudo estão disponíveis na íntegra para os assinantes da Globoplay.

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