Poucos dias depois de o blockbuster Pantera Negra (da Marvel) estrear nos cinemas, o veículo alternativo Mídia Ninja publicou, em sua página do Facebook, uma montagem comparativa entre os personagens da produção e os dubladores nacionais. “Desapontados, mas não surpresos: dubladores de Pantera Negra são todos brancos”, dizia a postagem. (Imagem original abaixo:)
Desapontados mas não surpresos: dubladores de Pantera Negra são todos brancos…
Publicado por Mídia Ninja em Segunda, 19 de fevereiro de 2018
(Fonte: Mídia Ninja / Facebook)
Após relativa repercussão da polêmica, muitos internautas fizeram os seguintes questionamentos: seria o apontamento da Mídia Ninja realmente válido? Até onde a representatividade étnica é necessária na interpretação dublada? Não seria a contratação de pessoas negras algo intrínseco a quaisquer meios?
Para esclarecer essas dúvidas, entrevistamos Kacau Gomes, dubladora de personagens muito queridas do grande público (como a protagonista da animação Mulan, a Tiana de A Princesa e o Sapo, e a Calíope, uma das musas de Hércules). Afinal, nada melhor do que alguém que já tenha trabalhado na dublagem, que seja mulher e negra, para comentar o assunto.
Francamente, querida!: Há quanto tempo você trabalha como dubladora?
Kacau Gomes: Na verdade, nunca trabalhei [exclusivamente] como dubladora. Sempre foram coisas específicas.
FQ: Como funciona a contratação de um estúdio? Você precisa apenas de formação como atriz, ou existe um processo mais burocrático?
K.G.: Sim, valores fechados para cada projeto. Na minha época, só precisei ter o registro de atriz.
FQ: Quais foram os primeiros passos que você deu para entrar na dublagem? O que a motivou a seguir com essa carreira?
K.G.: Na verdade, a dublagem aconteceu por acaso. Eu fazia um infantil (Pocahontas), e o diretor da Disney na época (Garcia Jr.), que também trabalhava como ator, me convidou para um teste em O Corcunda de Notre Dame. Mas eu não passei. [Depois] ele me chamou para tentar Hércules, que foi o próximo, e consegui o papel [como Calíope]. Confesso que adoraria fazer mais dublagem, mas tudo ficou mais difícil. Quem me chamava, não trabalha mais por lá. Daí, acho que acaba ficando um clima de “panela”.
“(…) penso que voz não tem cor. Entendo que estamos trabalhando por direitos iguais, e que se está abrindo uma janela, pela qual esperamos por muito tempo, mas não nesse caso.”
FQ: Recentemente, a Mídia Ninja fez uma postagem, em sua página do Facebook, criticando o fato de a maioria dos dubladores brasileiros do filme Pantera Negra ser composta de brancos. Você teve contato com essa polêmica?
K.G.: Não, eu não fiquei sabendo! Mas, penso que voz não tem cor. Entendo que estamos trabalhando por direitos iguais, e que se está abrindo uma janela, pela qual esperamos por muito tempo, mas não nesse caso. Eu não fui escalada para Tiana [protagonista de A Princesa e o Sapo] ou Mulan pela minha cor de pele, e sim pelo fato de ter a voz muito parecida, e também por poder cantar as canções.
FQ: Como mulher negra, como você vê a questão da representatividade na dublagem nacional? Você acha que essa é uma questão comum a outros meios, ou que, por trabalhar atuando, personagens negros deveriam ser dublados por atores igualmente negros?
K.G.: Eu, honestamente, prefiro pensar e acreditar que tudo o que conquistei foi pelo dom de cantar ou representar. Eu nunca me senti discriminada (não na minha frente). Nunca aconteceu. E ainda persisto no pensamento de que voz não tem cor. Se forem negros, brancos ou asiáticos capazes de fazer, maravilha! Não acredito, de verdade, que tenha preconceito nesse meio de dublagem. Acredito numa dificuldade geral para “qualquer pessoa” conseguir entrar no meio. Uma vez a “panela” formada, lá permanecerá.
FQ: Quais os personagens que você mais gostou de ter interpretado? Por quê?
K.G.: Mulan, com certeza, foi a minha heroína! Uma feminista de mão cheia, sem perder a ternura, e sem precisar levantar a voz para ninguém para conquistar seus objetivos. ”Foi lá” e fez. Simplesmente, seguiu seu coração e suas convicções de que tudo daria certo – e deu!
FQ: Você acredita que deveria existir um sistema de cotas em seu meio?
K.G.: Não. Se você é negro, cafuzo, mameluco, mulato, pardo, ou como eu mesma me defino (“afro-bege”), e tem uma voz incrível, é bom dublador e tem seu DRT (registro profissional de ator) em dia, continue batendo de porta em porta – como eu fiz. E aí, em um belo dia, vão estar precisando exatamente da sua voz. Desistir jamais, essa é a essência na qual eu acredito para ser um bom profissional em qualquer área.
https://www.instagram.com/p/Bh7SW-HhVH0/?taken-by=kacau_gomes
(Fonte: reprodução Instagram Kacau Gomes)
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