Depois de passar pela programação do 13º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, Como Fotografei os Yanomami, de Otávio Cury, chegou ao circuito comercial de cinemas nesta quinta (9), Dia Internacional dos Povos Indígenas.
O documentário nasceu de uma viagem feita pelo diretor em 2013. Na época, ele foi até a Serra de Surucucu, em Roraima, região de montanhas que fazem divisa com a Venezuela. Ali, Cury teve contato com a terra Yanomami e os conflitos que existem entre as tradições indígenas daquele povo e as presunçosas interações do homem branco, representado por despreparados agentes de saúde.
Da visita surgiu a vontade de retratar como o conceito de saúde do povo Yanomami, atrelado à sua cultura, entra em conflito, no dia-a-dia, com a saúde moderna imposta de forma completamente descuidada pelo governo brasileiro.
Ao decidir contar essa história em vídeo, Otávio Cury esbarra também em um dilema: como fazer um filme sobre saúde Yanomami se, para esse povo, saúde e bem-estar são aspectos intimamente relacionados à imagem? Para eles, uma foto simboliza um pedaço de alma eternizado. Assim, quando em mãos erradas, as imagens podem condená-los a vulnerabilidade. Além disso, os Yanomami acreditam que o indivíduo fotografado nunca morreria em paz se parte dele ainda estivesse materializada de alguma forma.
Para superar o impasse, o diretor faz uso do material que consegue. Traz a fala de alguns poucos indígenas menos agarrados às tradições, usufrui da vontade de dar entrevista dos agentes de saúde, que se consideram heróis por ficarem meses na floresta “cuidando de gente esquisita”, recupera imagens da internet gravadas pelos próprios nativos e recorre ao uso de letreiros para apresentar a visão de mundo do xamã Davi Kopenawa, a partir de passagens do livro “A queda do céu, memórias de um xamã yanomami”.
Em nenhum momento o filme chega a direcionar suas críticas a pessoas específicas. Pelo contrário, ele parte de personagens para tratar do coletivo, quando as discussões são todas postas sobre a mesa. Ao trazer as falas carregadas de preconceitos dos agentes de saúde, pessoas simples, funcionárias públicas, o longa destrincha a problemática em camadas e nos convida a pensar sobre o todo.
Num primeiro momento, salta aos olhos a falta de empatia diante do que é diferente. Todos os agentes de saúde começam suas falas dizendo que respeitam a cultura Yanomami e terminam entregando um pouco (ou muito) de seu estranhamento e intolerância. Um dos entrevistados afirma, por exemplo, que entende que indígenas tenham suas crenças, mas que, às vezes, ele mesmo batiza as crianças indígenas por acreditar que isso seja bom para elas.
Dessa forma, Cury parte da intolerância de pessoas que convivem diretamente com o povo Yanomami para chegar às esferas de poder negligentes do Estado. Nesse cenário, os agentes de saúde ocupam duas pontas do problema: de um lado, são profissionais que ganham pouco, passam meses na floresta sem estrutura e sem nenhum tipo de formação sobre a cultura do outro. Por outro lado, são figuras que, narrativamente, servem para demonstrar que nós, enquanto sociedade, somos absolutamente ignorantes e desrespeitosos. Esses agentes fazem a ponte entre as “parcelas de culpa” da população e do Estado.
A certa altura, o diretor abandona um pouco o seu lugar de alguém que apenas registra para sobrepor as imagens de indígenas rezando, como cristãos, na inauguração de uma unidade de saúde, com o hino nacional brasileiro como trilha. Nessa rápida passagem da montagem é revelada a hipocrisia de uma nação que se gaba de seus verdes campos, enquanto vende a alma para o agronegócio.
De acordo com reportagem do jornal El País, desde 2013 registra-se uma volta em massa de garimpeiros às terras demarcadas do povo Yanomami; e, em abril deste ano, o líder Davi Kopenawa foi à ONU, acompanhado da coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sônia Guajajara, para entregar ao órgão uma carta, assinada por 30 organizações indígenas brasileiras.
No documento, as organizações fazem denúncias sobre a atual situação da saúde dos seus povos, os ataques vividos por eles e as mudanças na Fundação Nacional do Índio (FUNAI) feitas pelo governo de Michel Temer. “Estamos tomando água suja, poluída de mercúrio. Isso significa que o povo Yanomami vai sumir”, declarou Kopenawa em entrevista ao jornal, onde também denunciou a falta de estrutura para conter surtos de malária que chegaram na região por conta da proximidade com a Venezuela.
Como Fotografei os Yanomami não explica, em si mesmo, como Otávio Cury interagiu com o povo que decidiu registrar. Nesse sentido, o título parece um pouco frustrante. Na ocasião da pré-estreia, em São Paulo, durante o Festival de Cinema Latino-Americano, o longa veio acompanhado de um debate com o realizador. Ali ficou claro que ainda persistia nas pessoas a curiosidade sobre como, então, os Yanomami foram filmados – mesmo que muito pouco filmados.
Às vezes a arte tem dessas. De repente, um registro sobre determinado recorte se transforma numa denúncia potente sobre descaso, e isso não faz do filme menos relevante. Nesse sentido, Como Fotografei os Yanomami ultrapassa a barreira de como filmar o que não pode ser filmado e se torna muito bem-vindo à filmografia brasileira que se esforça para, de alguma forma, propor reflexões sobre diversidade cultural e alteridade.
Assista ao trailer:
(Fonte: Descoloniza Filmes / YouTube)
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Ficha técnica
Direção: Otávio Cury
Duração: 1h12
País: Brasil
Ano: 2018
Gênero: Documentário
Distribuição: Descoloniza Filmes
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