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A cruzada da Record TV pela conquista de mercado e narrativa no cinema brasileiro
Em qualquer lugar do mundo, dominar o mercado cinematográfico e seu discurso é tão importante economicamente quanto ideologicamente. Sem ter cativado o imaginário de gerações de crianças, a Disney não viveria de remakes em live-action de suas antigas animações infantis – dentre elas, filmes de princesas que moldaram comportamentos femininos durante décadas, por exemplo. Estamos em 2019 e a cada novo trailer da empresa uma comoção é gerada, movimentando o mercado.
[Coluna] Nada a Perder, para além das polêmicas de bilheteria
=&0=&, a primeira parte da cinebiografia autorizada de Edir Macedo (interpretado aqui por Petrônio Gontijo), fundador da Igreja Universal do Reino de Deus e dono da Record TV, acaba de chegar ao catálogo da Netflix para ser exibida em 190 países – três meses depois de entrar em cartaz.
No final de março, quando chegou às telas dos cinemas brasileiros, “o filme do bispo”, como é chamado, repetiu o feito de Os Dez Mandamentos (2016) ao protagonizar diversas polêmicas sobre a divergência entre bilheteria estrondosa (quase 12 milhões de ingressos vendidos) e salas de exibição vazias.
Edir Macedo é um empreendedor capaz de movimentar multidões – como fica claro em sua própria cinebiografia. Por isso, não é de se espantar que os filmes de nicho religioso sejam lançados em circuito comercial ao melhor estilo “falem bem ou falem mal, mas falem de mim”. A intenção é clara: conquistar espaço também no cinema nacional, mesmo que para isso seja necessário fazer barulho.
E o barulho tem funcionado. Não temos como separar a quantidade de pessoas que de fato foram ao cinema do total de 12 milhões de ingressos vendidos. O que podemos – e devemos – fazer é perceber que, como negócio, o empreendimento tem dado resultado. Tanto em relação ao avanço da ideologia que o embala, quanto como produto que gera lucro. Afinal, o longa está entrando no catálogo da Netflix apenas três meses após seu lançamento. É de se imaginar que a empresa de streaming tenha notado o potencial de engajamento da produção.
O que tem sido raramente analisado, entretanto, é que as investidas ferozes desse tipo de filme não se restringem ao mercado. “Nada a Perder” está longe de ser um filme “inofensivo” sobre religião. A produção se assemelha mais a um tipo de jornada do herói brasileiro que salvará a alma de seu povo. Mais do que uma jornada de seu protagonista, o filme possui sua própria jornada – destinada a um povo muito específico, diga-se de passagem.
Para além das questões que envolvem audiência, também é necessário perceber “Nada a Perder” como obra audiovisual. Algo que carrega consigo características narrativas e técnicas que sustentam o conteúdo e a mensagem, formando, junto da bilheteria, um combo de intenções.
Indiscutivelmente, como obra audiovisual, o longa é sofrível. Sua linguagem é cheia de características típicas da televisão. Melodramático, apelativo, repleto de tentativas frustradas de criar momentos de tensão – geralmente forçados na base da trilha sonora previsível. Além disso, há momentos constrangedores, como as aparições de uma imitação de Silvio Santos risível e a cena ordinária de exorcismo.
No geral, o filme dirigido por Alexandre Avancini nos faz lembrar daquelas simulações do programa The Love School – Escola do Amor, exibido nas manhãs de sábado na Record TV e apresentado por Cristiane Cardoso, filha de Edir Macedo. Ou seja, são duas horas de uma dramatização ruim de televisão, com a vantagem de contar com atores menos amadores e muito mais dinheiro investido, claro.
A trama, por sua vez, soa tão controversa quanto os números de bilheteria. “Nada a Perder” poderia facilmente ter o subtítulo “Contra Tudo. Por Alguns”. Isso porque a biografia fala sobre um homem que empreendeu na fé, sob o argumento de não sentir que suas crenças eram contempladas pelas igrejas que frequentava, mas que, depois de encontrar seu espaço e seus fiéis, tomou suas próprias crenças como verdade absoluta.
É no mínimo curioso que um homem retratado de forma tão revolucionária e questionadora, que diz ter sido preso por preconceito religioso, seja o responsável por uma emissora de TV na qual não se pode falar sobre outras religiões e onde religiões já marginalizadas são atacadas – uma emissora de TV aberta, concessão pública do Estado.
Todos os obstáculos que o bispo enfrenta para fazer valer sua religião criam um excelente contexto para transmitir a mensagem de que cada pessoa tem o direito de crer no que acha melhor, mas a oportunidade, obviamente, é desprezada em prol da narrativa do herói que tem uma missão divina, única e extraordinária.
O desenvolvimento do protagonista como herói é, inclusive, outro elemento da narrativa que soa bastante embaraçoso. Logo no início do filme, por exemplo, um Edir Macedo jovem aparece revoltado com o bispo de sua congregação quando ele não recebe bem um morador de rua porque “o cheiro do sujeito afastaria os outros fiéis”.
Essa é uma passagem interessante, principalmente se nos lembrarmos das regras de conduta e vestimenta impostas a quem deseja entrar no Templo de Salomão, um santuário monumental inaugurado em 2014 pela Universal.
Vale destacar também que o longa conta com “apoio cultural” da Riachuelo, marca de fast fashion condenada em 2016 por
trabalho escravo
Ex-Pajé, documentário de Luiz Bolognesi, denuncia as mazelas da evangelização indígena no Brasil
Perpera passou anos de sua vida sendo considerado como o sábio e poderoso Pajé da tribo indígena brasileira Paiter Suruí, mas tudo muda com a chegada de um pastor branco que traz consigo a violência velada da intolerância religiosa.
Quando a missão evangelizadora se instala na tribo, os costumes começam a se transformar. Perpera, que antes era tratado respeitosamente como um líder religioso, passa a ter suas crenças comparadas a “coisas do demônio”. Para não ser excluído de sua própria comunidade, o agora ex-pajé se converte à religião dos brancos invasores.
Toda essa trajetória do ex-líder Paiter Suruí é anterior às gravações do documentário de Luiz Bolognesi. Em Ex-Pajé, o diretor retrata, demonstrando até muito cuidado – sem nunca se colocar em frente às câmeras ou com perguntas -, o cotidiano de um indígena brasileiro que teve sua identidade violada e sua rotina modificada.
No momento do recorte do registro de Bolognesi, o que se nota na tribo são as inúmeras contradições que tomam a comunidade. Perpera abandonou sua liderança para, hoje, ter que vestir camisa e gravata e estar a serviço das necessidades de um culto religioso que se impõe sobre sua tradição. Ao mesmo tempo, a aldeia também é exposta ao mundo moderno. Aos encantos da internet, das comidas e remédios industrializados.
Através de lentes observadoras e pacientes, Bolognesi reconstrói cenas cotidianas – como as do ex-pajé na fila de uma casa lotérica ou perambulando pelos corredores de um supermercado – que retratam bem o desconforto e até a sensação de não pertencimento melancólica que tomam o protagonista diante de um mundo que lhe foi imposto.
Apesar dos ares de denúncia, Ex-Pajé não é uma obra pessimista. Ali, na entrelinhas dos pequenos diálogos e ensinamentos agora acanhados de Perpera, o diretor consegue demonstrar que, no fundo, o pajé nunca se deixou abandonar por seus espíritos da floresta. À sua maneira, ele resiste. Ao transmitir às novas gerações o que consegue, mantém vivas as tradições que nenhum pastor branco ou cartela de aspirina é capaz de fazer desaparecer por completo.
Antes de chegar ao circuito comercial, o filme foi exibido pela Mostra Panorama, do Festival de Berlim, em fevereiro deste ano, e, mais recentemente, pelo festival de documentários É Tudo Verdade, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na ocasião em que o longa estreou no festival alemão, Bolognesi leu um manifesto que começava da seguinte maneira:
“Os espíritos da floresta estão zangados, chorando por ajuda, como se, para cada árvore derrubada, cada rio poluído, eles se aproximassem da extinção. Um sábio xamã disse uma vez, a floresta é um portal cristalino, e todos nós, os humanos, precisamos disso. Se a floresta partir, nosso espírito partirá também. Os pajés devem existir e, para existir, devem ser respeitados. Antes que seja tarde demais, o mundo seja esvaziado de sua espiritualidade e o Céu pode cair sobre nossas cabeças! Chega de etnocídio! Mais pajés! Menos intolerância”.
Foi assim que, logo no início da trajetória de Ex-Pajé, o diretor assumiu o posicionamento de resistência de sua obra. Resistência contra a intolerância religiosa e contra o que é apoiado por ela, como os exploradores legais e ilegais dos recursos naturais da floresta. O agronegócio, que em parceria com a imposição ideológica e religiosa, fragiliza toda uma cultura.
Chega a ser curioso (e importante) notar que Ex-Pajé começa a ser exibido no Brasil poucas semanas depois da estreia do controverso Nada a Perder – Contra Tudo. Por Todos, a primeira parte da cinebiografia do Bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus e proprietário da Record TV.
Lançado em 29 de março deste ano sob uma forte campanha de marketing – fomentada principalmente pelo “boca a boca” entre os milhares de fiéis que enxergam em Edir Macedo seu grande líder religioso -, “Nada a Perder” alcançou a estrondosa bilheteria de mais de 2 milhões de ingressos vendidos no fim de semana de estreia. Ultrapassando até mesmo o americano Jogador Nº 1, de Steven Spielberg.
Os números, apesar de barulhentos, são questionáveis. A cinebiografia de Edir Macedo chegou aos cinemas repetindo a polêmica de
Os Dez Mandamentos