Atenção: este texto contém spoilers. Antes de seguir com a leitura, assista ao curta aqui.
Aos 34 anos e tomada pela coragem que reuniu ao longo de muito tempo, Glória (Patricia Saravy) decide, numa manhã que tinha tudo para ser como qualquer outra, se livrar de um ciclo que a oprime e fragiliza há mais de uma década e recuperar o seu direito de ser, de existir com dignidade.
Essa seria a sinopse otimista do curta Tentei, da diretora Laís Melo, indicado à categoria de Melhor Curta-metragem de Ficção do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro 2018. A obra, no entanto, segue o caminho tortuoso da realidade cotidiana de milhões de mulheres brasileiras: a realidade das dificuldades de denunciar violência doméstica no país.
Antes de mais nada, é preciso entender o que é violência doméstica. Conforme definido pela Lei Maria da Penha, “violência doméstica e familiar contra a mulher é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial’’.
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O Dossiê Violência Contra as Mulheres, da Agência Patrícia Galvão, conta com vários dados sobre violência doméstica no Brasil. Por exemplo, estima-se que cinco mulheres são espancadas a cada 2 minutos; o parceiro (marido, namorado ou ex) é o responsável por mais de 80% dos casos reportados, segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado (FPA/Sesc, 2010)
Ainda de acordo com o documento: “Apesar dos dados alarmantes, muitas vezes, essa gravidade não é devidamente reconhecida, graças a mecanismos históricos e culturais que geram e mantêm desigualdades entre homens e mulheres e alimentam um pacto de silêncio e conivência com estes crimes.
Na pesquisa Tolerância social à violência contra as mulheres (Ipea, 2014), 63% dos entrevistados concordam, total ou parcialmente, que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família”. E 89% concordam que “a roupa suja deve ser lavada em casa”, enquanto que 82% consideram que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.”
Então, sob o recorte certeiro de Laís Melo, também roteirista, Tentei acompanha a árdua trajetória da mulher que quer denunciar o marido. O filme vai desde o momento em que ela acorda, decidida a romper com sua atual situação, até o momento em que, desesperançosa e desmotivada por estruturas despreparadas, retorna à sua casa para, sem opção, reiniciar o ciclo.
A caminhada de Glória é solitária. Fica evidente que não há ninguém próximo para apoiá-la. Depois, quando chega à delegacia, a personagem é tratada como um número. Como somente mais uma ficha do escrivão homem. Para ela, entretanto, esse poderia ser o dia mais importante de sua vida, mas acaba frustrado pelos mecanismos institucionalizados que mais funcionam como outro tipo de violência do que como ajuda.
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Laís Melo usa da ficção para representar todas as sutis (ou nada sutis) violências que convivem com mulheres vítimas de agressores protegidos pela impunidade. Mulheres que saem de casa dispostas a mudar o rumo de suas vidas, mas que, ao se depararem com delegacias despreparadas, funcionários nada empáticos e toda uma cultura misógina que diz que a culpa é sempre feminina, voltam para casa e esperam resignadas pela próxima agressão.
Tentei é um filme curto e brutal, mas também é, acima de tudo, uma denúncia indispensável que só faz somar como obra nacional disposta a tratar de violência de gênero – principalmente por ter uma equipe formada por mulheres e por tratar da questão exclusivamente sob a ótica da protagonista mulher.
Como ponto alto, a atuação contida e silenciosa de Patrícia Saravy representa a aflição de mulheres que são mais do que estatísticas, mesmo que a engrenagem que segue acobertando machismo e violência tente ignorá-las. Afinal, Glória estava viva para tentar, mas o que acontece quando uma denúncia mal sucedida termina em feminicídio? Quantas vidas de mulheres o Brasil negligencia todos os dias?
*Leia o Dossiê Violência Contra as Mulheres completo neste link.
Leia também: “A Passagem do Cometa: o aborto no cinema fantástico de Juliana Rojas”
Ficha técnica
Direção: Laís Melo
Duração: 14 min
País: Brasil
Ano: 2017
Elenco: Carlos Henrique Hique Veiga, Janine Mathias, Patricia Saravy, Richard Rebelo
Gênero: Drama
Disponível em: Porta Curtas
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