Ex-Pajé, documentário de Luiz Bolognesi, denuncia as mazelas da evangelização indígena no Brasil

Perpera passou anos de sua vida sendo considerado como o sábio e poderoso Pajé da tribo indígena brasileira Paiter Suruí, mas tudo muda com a chegada de um pastor branco que traz consigo a violência velada da intolerância religiosa.

Quando a missão evangelizadora se instala na tribo, os costumes começam a se transformar. Perpera, que antes era tratado respeitosamente como um líder religioso, passa a ter suas crenças comparadas a “coisas do demônio”. Para não ser excluído de sua própria comunidade, o agora ex-pajé se converte à religião dos brancos invasores.

Perpera em ‘Ex-Pajé’ / Divulgação

Toda essa trajetória do ex-líder Paiter Suruí é anterior às gravações do documentário de Luiz Bolognesi.  Em Ex-Pajé, o diretor retrata, demonstrando até muito cuidado – sem nunca se colocar em frente às câmeras ou com perguntas -, o cotidiano de um indígena brasileiro que teve sua identidade violada e sua rotina modificada.  

No momento do recorte do registro de Bolognesi, o que se nota na tribo são as inúmeras contradições que tomam a comunidade. Perpera abandonou sua liderança para, hoje, ter que vestir camisa e gravata e estar a serviço das necessidades de um culto religioso que se impõe sobre sua tradição. Ao mesmo tempo, a aldeia também é exposta ao mundo moderno. Aos encantos da internet, das comidas e remédios industrializados.

Através de lentes observadoras e pacientes, Bolognesi reconstrói cenas cotidianas – como as do ex-pajé na fila de uma casa lotérica ou perambulando pelos corredores de um supermercado – que retratam bem o desconforto e até a sensação de não pertencimento melancólica que tomam o protagonista diante de um mundo que lhe foi imposto.

Apesar dos ares de denúncia, Ex-Pajé não é uma obra pessimista. Ali, na entrelinhas dos pequenos diálogos e ensinamentos agora acanhados de Perpera, o diretor consegue demonstrar que, no fundo, o pajé nunca se deixou abandonar por seus espíritos da floresta. À sua maneira, ele resiste. Ao transmitir às novas gerações o que consegue, mantém vivas as tradições que nenhum pastor branco ou cartela de aspirina é capaz de fazer desaparecer por completo.

‘Ex-Pajé’ / Divulgação

Antes de chegar ao circuito comercial, o filme foi exibido pela Mostra Panorama, do Festival de Berlim, em fevereiro deste ano, e, mais recentemente, pelo festival de documentários É Tudo Verdade, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na ocasião em que o longa estreou no festival alemão, Bolognesi leu um manifesto que começava da seguinte maneira:

“Os espíritos da floresta estão zangados, chorando por ajuda, como se, para cada árvore derrubada, cada rio poluído, eles se aproximassem da extinção. Um sábio xamã disse uma vez, a floresta é um portal cristalino, e todos nós, os humanos, precisamos disso. Se a floresta partir, nosso espírito partirá também. Os pajés devem existir e, para existir, devem ser respeitados. Antes que seja tarde demais, o mundo seja esvaziado de sua espiritualidade e o Céu pode cair sobre nossas cabeças! Chega de etnocídio! Mais pajés! Menos intolerância”.

Foi assim que, logo no início da trajetória de Ex-Pajé, o diretor assumiu o posicionamento de resistência de sua obra. Resistência contra a intolerância religiosa e contra o que é apoiado por ela, como os exploradores legais e ilegais dos recursos naturais da floresta. O agronegócio, que em parceria com a imposição ideológica e religiosa, fragiliza toda uma cultura.

‘Ex-Pajé’ / Divulgação

Chega a ser curioso (e importante) notar que Ex-Pajé começa a ser exibido no Brasil poucas semanas depois da estreia do controverso Nada a Perder – Contra Tudo. Por Todos, a primeira parte da cinebiografia do Bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus e proprietário da Record TV.

Lançado em 29 de março deste ano sob uma forte campanha de marketing – fomentada principalmente pelo “boca a boca” entre os milhares de fiéis que enxergam em Edir Macedo seu grande líder religioso -, “Nada a Perder” alcançou a estrondosa bilheteria de mais de 2 milhões de ingressos vendidos no fim de semana de estreia. Ultrapassando até mesmo o americano Jogador Nº 1, de Steven Spielberg.

Os números, apesar de barulhentos, são questionáveis. A cinebiografia de Edir Macedo chegou aos cinemas repetindo a polêmica de Os Dez Mandamentos, em 2016. Naquele ano, o filme passou a ocupar não só a maior bilheteria do período, como também a posição de filme nacional com maior número de ingressos vendidos desde a criação da Embrafilme (1970). A quantidade de ingressos vendidos, entretanto, não foi equivalente aos números reais de espectadores, já que diversos relatos de sessões vazias surgiram nas redes sociais e foram denunciados pela imprensa.

Desta vez a situação não é muito diferente. A forma como ‘Nada a Perder’ se engrandece em números de ingressos vendidos segue parecendo, no mínimo, embaraçosa.  Diversos veículos de comunicação voltaram a denunciar sessões vazias da produção evangélica e mais relatos tomaram as redes sociais.

‘Nada a Perder’/ Divulgação

Entre os depoimentos é possível encontrar até gente que afirma que membros da igreja ficam posicionados em frente aos complexos de cinemas, oferecendo ingressos a quem estiver passando. Outros dizem ter presenciado sessões que terminaram com alguém puxando uma oração. Comportamento um tanto quanto peculiar para uma sala de cinema, além de desrespeitoso com quem não compartilha das mesmas crenças.

Um simples busca no Twitter por “Nada a Perder ingressos”, resulta em incalculáveis comentários de pessoas que foram abordadas por alguém que oferecia as entradas. Abordagens nem sempre delicadas.

Ao que tudo indica, os ingressos são comprados em pacotes, prática comum no cinema (assim como fechar salas para alguma exibição). A grande questão é: de que maneira esses ingressos são distribuídos e por quê? Segundo matéria do Jornal Nexo, também existe uma espécie de articulação para aumentar a nota do filme em sites onde o público pode dar sua avaliação, como o IMDb.

A Universal, por sua vez, afirmou, em nota divulgada pelo Jornal O Globo, que a imprensa tenta boicotar o triunfo da produção publicando inverdades (fake news) e que a distribuição de ingressos (assim como as ótimas notas) é fruto de mobilização espontânea de fiéis que acreditam que a mensagem do longa deve ser espalhada. 

Fake news ou não, os esforços para alavancar a grandiosidade da obra (mesmo que artificialmente) são inegáveis. Existe toda uma dinâmica envolvida no engajamento do filme. Uma dinâmica que se apropria de diversas frentes e se alastra rumo a algum objetivo não assumido.

Ainda de acordo com o Nexo, ‘Nada a Perder’ foi realizado através de investidores privados e não usou leis de incentivo. Teve orçamento de R$ 40 milhões ( somando o gasto de sua sequência, prevista para 2019) e alcançou 4 milhões de ingressos vendidos na pré-venda. Além disso, a distribuição mundial por streaming já está negociada com a Netflix.

É visível que, para além da potência ideológica, os filmes amparados pela Universal carregam consigo uma enorme estrutura econômica. O próprio subtítulo de ‘Nada a Perder’ já determina sua missão. ‘Contra Tudo. Por Todos’, um claro posicionamento que demonstra o caráter dominador e empreendedor da evangelização frente a tudo que simboliza relutância ou oposição.

‘Nada a Perder’ / Divulgação

O slogan do filme também pode facilmente ser lido como símbolo de uma  campanha de expansão massiva destes ideais sobre o cinema nacional. O cinema, potente instrumento de formação de imaginário, agora é palco de uma disputa de narrativa escancarada.

Não à toa surgem tantos relatos de comportamentos um tanto quanto invasivos durante as sessões do filme do bispo. Toda a violência ideológica que chega disfarçada de salvação de almas em Ex-Pajé, chega agora do mesmo modo às salas de cinema – e com amplo apoio do capital.

Basta comparar a desigualdade de distribuição. O quanto é fácil encontrar uma sessão de ‘Nada a Perder’ (que já está há algumas semanas em cartaz) e o quanto será difícil uma sessão do filme de Bolognesi. Filme este que tem tudo para ser a narrativa que se opõe diretamente a um discurso dominante.

Ex- Pajé, ocupa, portanto, não só o lugar de importante documentário nacional, do ponto de vista do registro. Mas assume a indispensável posição de contra-narrativa, de resistência. Afinal, até onde se sabe, o cinema é laico.

Trailer de Ex-Pajé:

(Fonte: Ex-Pajé – Filme / Youtube) 

 

Ficha técnica

Ano: 2018

Duração: 1h21

Direção: Luiz Bolognesi

Elenco: Perpera Suruí, Kabena Cinta Larga, Ubiratan Suruí

Gênero: Documentário

Distribuição: Gullane Filmes

País: Brasil

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