Tem restado muito pouco de cidade maravilhosa à fama do Rio de Janeiro. Há alguns anos a cidade é tristemente tomada pelo descaso público e, consequentemente, por violência, desastres “naturais” e desigualdades sociais alarmantes. Ser sede dos Jogos Olímpicos em 2016 só fez agravar o contexto caótico da cidade e piorar a crise de moradia.
À época, o megavento transformou a zona oeste do Rio em um enorme canteiro de obras e, a partir de medidas repressivas e higienistas do governo municipal, removeu inúmeras famílias de suas casas na Vila Autódromo para a construção do Parque Olímpico na região.
É nesse contexto conturbado e olímpico que se desenvolve o filme Mormaço, primeiro longa-metragem da diretora Marina Meliande. Nele, a atriz Marina Provenzzano interpreta Ana, uma jovem defensora pública que luta para defender os direitos de moradores resistentes às remoções na Vila Autódromo. Enquanto isso, ela mesma corre o risco de ter que se mudar de seu apartamento de classe média por conta do avanço da especulação imobiliária na cidade.
Não bastasse as intensas demandas do trabalho e os aborrecimentos de uma provável mudança, o calor e a poluição do Rio não dão trégua à protagonista. Aos poucos, Ana começa a desenvolver uma doença de pele misteriosa, que avança à medida em que o estresse e a insalubridade tomam conta de seu dia a dia.
O incômodo da personagem cresce tal como a sensação de mormaço: é algo quase abstrato, mas envolvente, teimoso, sufocante e desconfortável. Progressivamente, Ana vai sendo tomada por fenômenos que a dominam e fazem aumentar a presença do desconhecido no filme. Resistir, argumentar e buscar soluções torna-se exaustivo, e o assombro da impotência que se manifesta na personagem interfere tanto em seu cotidiano e relações quanto em seu corpo.
A certa altura, o acúmulo de frustrações e disputas de força criam monstros e paralisam. Conforme as situações exteriores ficam insustentáveis e geram ansiedades particulares e coletivas, a protagonista também definha, acompanhada pela substituição da atmosfera solar carioca do início da produção por ambientações soturnas, grotescas e deterioradas. O espetáculo dos jogos mundiais, afinal, é passageiro, mas os prejuízos humanos acontecem gradativamente e tornam-se permanentes.
É impossível assistir a Mormaço sem se lembrar da especulação imobiliária de Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, ou das plantas que crescem pelo corpo da protagonista de Um Ramo, curta-metragem de Juliana Rojas e Marco Dutra. Sem dúvidas, Meliande, que também assina o roteiro ao lado de Felipe Bragança, usa referências claras em seu trabalho, mas o faz com personalidade própria e êxito.
Combinando imagens reais dos despejos dos moradores da Vila Autódromo com ficção, a diretora consegue criar um universo rico em metáforas sobrenaturais para tratar de degradações sociais. Magnético, o longa prende atenção do começo ao fim.
Por isso, talvez a maior qualidade da obra seja, justamente, a eficiência do desenvolvimento do suspense e a crescente dos símbolos de horror. Sobrepondo o real e o fantástico, o filme estabelece complexidades importantes a partir da associação dos conflitos urbanos e de poder à doença da protagonista.
Mormaço pertence, portanto, ao time de bons filmes nacionais, de gênero e comprometidos com as questões da contemporaneidade brasileira que estão sendo lançados no circuito comercial nos últimos anos. Infelizmente e ironicamente, sua estreia acontece no início do que promete ser um período de horror para a diversidade e o audiovisual do país.
Trailer:
Ficha técnica
Direção: Marina Meliande
Duração: 1h36
País: Brasil
Ano: 2019
Elenco: Marina Provenzzano, Pedro Gracindo, Analú Prestes, Igor Angelkorte
Gênero: Drama, Fantasia, Horror
Distribuição: Vitrine Filmes
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